Quarenta anos depois, o principal montador do Cinema Novo analisa sua herança
Por João Bernardo Caldeira
Arquivo AJB / dezembro de 1979
Era uma tarde de domingo e, enquanto Gustavo Kuerten entrava em quadra para disputar mais uma final - desta vez em Indianápolis - Eduardo Escorel, diretor de "Lição de Amor", "Ato de Violência" e "Cavalinho Azul" e o mais importante montador do Cinema Novo, nos recebia, em sua casa, no Jardim Botânico.
Trabalhou com Joaquim Pedro de Andrade (O Padre e a Moça, Macunaíma, Os Inconfidentes), Cacá Diegues (Joana Francesa, Quando o Carnaval Chegar, Os Herdeiros), Leon Hirszman (São Bernardo) e Gustavo Dahl (O Bravo Guerreiro). "Eu não sabia nada! Só a inconseqüência da juventude é que permitiu me lançar naquilo", diz, lembrando de quando foi chamado, então com 21 anos, por Glauber Rocha, seis anos mais velho, para montar Terra em Transe.
Com Glauber, a colaboração foi intensa: além de Terra em Transe, montou O Dragão da Maldade Contra o Santo Guerreiro, O Leão de Sete Cabeças e Cabeças Cortadas. Do período de intensa movimentação cinematográfica, com ares também de luta política, fica não apenas a saudade, mas uma referência que ainda paira no ar, acredita. "O fato de se fazer cinema no Brasil até hoje se deve a ter havido um movimento chamado Cinema Novo", sentencia.
O que não quer dizer que esse seja o único paradigma de cinema possível. "Não é um dogma", afirma categoricamente."As pessoas confundem um pouco as coisas, citam a estética da fome como se o cinema dele fosse uma ilustração da estética da fome, quando nunca foi", diz, ao ser perguntado sobre a recente discussão no Caderno B, do Jornal do Brasil, entre a produtora Mariza Leão e a pesquisadora Ivana Bentes, sobre a estética da fome no cinema brasileiro atual. "As pessoas citam a Estética da Fome como se fosse um decálogo", critica.
Guga, maior glória nacional dos dia de hoje - com fardo ainda maior enquanto o futebol anda mal das pernas -, acabou abandonando a partida, ainda no primeiro set, saberíamos mais tarde. Já a conversa, durou quase duas horas. "A essa altura ele já dever ser o campeão", comentamos. Foi quando, então, ficou claro que, aquele que um dia fez parte também da glória nacional, dos spots internacionais, do movimento que procurava retratar as massas e mudar o mundo, hoje é fã de Gustavo Kuerten, daqueles que não perdem um jogo.
"Não tenho PSN", lamentou, sobre o único canal que transmitiria a final.
Você tem memória do artigo do Glauber de julho de 61 publicado no Jornal do Brasil ? Como foi aquela época?
Eu não teria sido levado para o cinema ou não teria sido atraído pelo cinema se eu não tivesse lido naquela época os artigos do Glauber especificamente e os artigos em geral publicados no suplemento dominical do JB. Esse artigo, especificamente, e outros desse momento tiveram uma importância tão grande quanto os filmes, senão ainda maior, porque vieram antes. Ou antes muitas vezes da gente poder ver os filmes. A circulação dos filmes era difícil. A gente ouvia falar dos que estavam sendo feitos, de experiências, algumas das quais nem vieram a ser concluídas. Havia um filme que o Cacá (Diegues) começou a fazer com o Davi (Neves) que ele nunca concluiu. O próprio Barravento (primeiro filme longa metragem de Glauber, de 61) eu fui ver em 62, ainda relativamente cedo, mas vi numa sessão especial.
Os artigos do suplemento dominical do Jornal do Brasil e os artigos do suplemento literário do Estado de São Paulo também, artigos do Paulo Emílio (Salles Gomes), eram coisas que a gente esperava como quem espera alguma coisa que vai servir de alimento. Esses artigos sobre cinema tiveram um papel absolutamente crucial pra mim e imagino para muito mais pessoas nessa época. Era interessante o fato de você saber que existiam outras pessoas ligadas àquilo. Em 61 eu não conhecia ninguém em cinema, eu estava no segundo ano científico. Ali começou a se estabelecer uma espécie assim de rede, talvez fosse o correspondente ao que é a Internet hoje em dia. Sem a sofisticação e a velocidade da Internet, mas os artigos do jornal estabeleciam uma rede que não se sabia, mas que era uma rede de comunicação. Você ficava sabendo do filme tal, que passou, que o Arraial do Cabo foi visto na Europa, na existência dessas pessoas.
A idéia de que era possível pessoas jovens fazerem cinema, que dentro do universo cinema é uma novidade muito grande, e que talvez tenha começado um pouco antes com a Nouvelle-Vague, que teve também uma importância fundamental. As grandes influências desse momento, os grandes fatores de mobilização, de estímulo e de formação dessa rede eram a leitura do Cahiers du Cinema (revista francesa), a leitura dos suplementos dominicais do Jornal do Brasil e todo sábado a leitura do suplemento literário no Estado De S. Paulo. Isso aí criou um vínculo, era leitura absolutamente obrigatória, comentada e assunto de conversa.
A história do cinema novo está muito ligada na sua origem ao Jornal do Brasil. E depois, já uma outra geração, muita ligado ao festival de curta-metragens patrocinado pelo Jornal (Festival JB). Aí já uns 4 ou 5 anos depois, toda uma geração... que era o JB Mesbla, e que virou o Festival JB. Até isso num certo sentido é uma coisa muito diferente de hoje em dia talvez pela quantidade de coisas que são publicadas, revistas e coisas na Internet. Naquela época era também um grupo menor de pessoas que rapidamente estabeleceram uma espécie de confraria.
Glauber, bem como o Cinema Novo, eram associados ao improviso no momento da filmagem. Até que ponto esse improviso também acontecia na montagem?
Acho que ele teve pelo menos algumas fases na carreira. A minha experiência pessoal com ele é relativamente curta, montei quatro filmes dele, além de uma pequena experiência em Maranhão 66, no Maranhão, que fui fazer o som direto, não fiz a montagem. O que posso dizer é que num filme como Terra em Transe (terceiro filme do diretor) o Glauber teve a característica de, a cada etapa, inventar um novo filme. Ele fez varias versões do roteiro, cada uma bastante diferente da outra. De certa maneira, filmou um filme diferente do roteiro e de certa maneira montou um filme diferente da filmagem. Isso não e uma coisa muito comum. Eu acho que é bastante diferente de Deus e o Diabo na Terra do Sol (segundo filme de Glauber), onde tinha um roteiro, uma estrutura, que mais ou menos foi seguido.
Não sei se improviso é a melhor palavra. Com certeza havia muita improvisação na filmagem, mas não sei se a melhor maneira de escrever o método dele fosse o método de improvisação. Ele elaborava muito os filmes antes. Realmente na personalidade dele tinha uma coisa do processo de trabalho ser meio ritualístico, a maneira dele se envolver com a equipe, com os atores. Não era uma relação fria, objetiva, profissional, como muitas vezes a relação de um filme pode ser. Tinha um quê de ritual, de criar uma certa atmosfera, uma certa tensão, um certo clima, e aproveitar isso na filmagem.
Os filmes de Gluber são considerados não lineares, de ruptura. Até que ponto essa ruptura era estabelecida também na montagem, ou já estava prevista no roteiro, ou mesmo na filmagem?
Isso variou muito. No caso do Terra em Transe, que basicamente é um grande flashback, a estrutura narrativa do filme pode ser entendida como aquilo que passa na cabeça do personagem do Paulo Martins, entre o instante em que ele leva os tiros da polícia e o momento em que ele morre, segundos depois. Se passa 1h30 de filme nesse intervalo. Isso deu à montagem do filme uma liberdade muito grande.
O Glauber não tinha previamente uma convicção, uma clareza muito grande de como o filme começava, como seria organizado. Aquilo foi sendo feito na medida em que o filme foi sendo montado. E ele filmou muito, muita coisa não foi aproveitada, tem até essas estórias de que apareceu material não aproveitado, na PUC de Minas, estórias meio rocambolescas.
Mas como eu dizia, isso variou muito. Ele retomou - se é que se pode falar em linearidade no caso do Glauber, que é uma coisa altamente duvidosa - no Dragão da Maldade Contra o Santo Guerreiro uma relativa linearidade que existia em Deus e o Diabo e que não existia em Terra em Transe, que era um filme mais livre. Depois, tanto no Leão de 7 Cabeças, quanto no Cabeças Cortadas, eu acho que ele estava bem mais livre.
E como era essa relação na montagem?
A relação na montagem também variou. Eu tenho a convicção de que, no Brasil, a personalidade criativa decisiva de um filme é a personalidade criativa do diretor. E sempre que trabalhei montando filmes de outros diretores, considerei assim. Acho que a montagem é um trabalho de colaboração, que pode ser maior ou menor dependendo de um série de circunstâncias, inclusive da relação que se estabelece entre o montador e o diretor. Da relação de confiança de parte a parte que existe. No final das contas, o decisivo é a visão e a concepção do diretor que, quando o montador recebe o material, já estão claramente impressas nas imagens e sons. A montagem de um filme, de certa forma, não é uma coisa que se inventa, é alguma coisa que você detecta no material que está feito. A maneira como um determinado conjunto de sons e imagens pode ser organizado, já está dentro do próprio material. O trabalho do montador é muito mais de decifrar aquele material que ele recebe do que o de inventar ou de criar uma nova forma para aquilo. Isso, a meu ver, não diminui em nada a importância do trabalho da montagem em qualquer filme. Em qualquer concepção, de qualquer tipo de filme, esse é o momento em que o filme ganha sua forma final. É um momento absolutamente crucial.
Terra em Transe foi o segundo filme que eu montei, tinha acabado de completar 21 anos, depois de O Padre e a Moça (de Joaquim Pedro de Andrade). Eu não sabia nada! Só a inconseqüência da juventude (risos) é que permitiu me lançar naquilo. Ao mesmo tempo, isso é uma demonstração de uma grande generosidade por parte do Glauber, com a pouca experiência que eu tinha. Uma demonstração também do momento, da mocidade das pessoas que estavam fazendo cinema, o Glauber, que é de 1939, era 6 anos mais velho do que eu.
Para mim foi um aprendizado extraordinário, como todo filme é, até hoje. Mas hoje em dia talvez eu possa ter a pretensão de achar que eu sei um pouco mais do que sabia naquele tempo. Realmente aprendi ali, junto com ele, fazendo aquele filme.
Com exceção do Nelson (Pereira do Santos), você trabalhou com os principais diretores do Cinema Novo. Qual era o ponto de interseção entre eles e o que a obra de Glauber trazia de singular em relação ao movimento?
...(longa pausa) Pergunta difícil!(risos).
Havia um elo bastante forte unindo essas pessoas, não deixava de haver tensões, ameaças de ruptura, brigas, mas havia um elo. Embora eu ache que as concepções de cinema, tanto de linguagem cinematográfica, quanto de interesse, fossem bastante distintas. Trabalhar com essas pessoas era questão de fazer parte de um determinado grupo que estava começando a fazer cinema e tinha uma espécie de fé, de crença na sua importância, uma crença quase mística de um poder que o cinema teria.
No plano concreto dos filmes, o fato de eu ter montado Terra em Transe, criou uma certa identidade com essas pessoas. Quero dizer, eu era a pessoa que tinha trabalhado com Glauber em Terra em Transe. Imagino que isso tenha levado essas pessoas a me chamarem para montar seus filmes a partir daí.
Durante 10 anos (65-75) eu trabalhei quase que exclusivamente nisso. Mas ao mesmo tempo havia personalidades muito diferentes, e as relações no trabalho também eram distintas, assim como os filmes.
O Glauber tinha um pouco a vocação de chefe de escola, de ser porta estandarte, de comandar a massa. Um filme que ficava pronto, quando ele via, se ele gostava ou não, como é que ele reagia, isso tudo gerava tensões. Ou, às vezes, isso gerava uma espécie de defesa incondicional do que vinha, independente de uma avaliação objetiva. Era complicado quando uma pessoa de fora, que não era do grupo, não gostava de um filme. Aí o Glauber se levantava como grande defensor.
Talvez uma postura anti-imperialista fosse uma das coisas que os unisse...
Essa coisa do anti-colonialismo cultural, marcou muito essa geração, do final da década de 50 até 64. Um período de participação política, agitação, expectativa de transformações e que todo mundo via em diferentes graus. Isso se refletia, com certeza, no trabalho das pessoas. Essa idéia de um cinema para o Terceiro Mundo, não colonizado, em conflito com o cinema americano, dominava o debate ideológico e o debate cultural. E o Glauber era um dos grandes porta-vozes disso.
Mas diferenças estética existiam...
Pegando o Padre e a Moça, São Bernardo (Leon Hirszman) e Eles Não Usam Black Tie (Leon Hirszman) como exemplo, são filmes que se pode dizer que têm uma empostação, uma estrutura narrativa que poderia se chamar de cinema clássico, um cinema narrativo. São filmes que eu gosto bastante, mas são muito diferentes dos filmes do Glauber, de Terra e Transe principalmente.
Porém, pegando Porto das Caixas (Paulo César Saraceni, 1965) e Cinco Vezes Favela (5 episódios de 5 diretores diferentes) como exemplo, nota-se que são muito diferentes. Porto das Caixas e Deus e o Diabo, são propostas muito distintas.
Nem por isso o Glauber deixou de ser um grande defensor de Porto das Caixas, que foi um filme muito criticado pela esquerda, pelo CPC da UNE, que o via como um filme que não estabelecia um elo de comunicação com o público.
Havia muita discussão entre o cinema comprometido com a busca e transformação de uma linguagem, e o cinema seguindo um padrão narrativo mais consolidado, estabelecendo elos afetivos e emocionais com a platéia. Assalto ao Trem Pagador (Roberto Farias), por exemplo, é um filme que se assiste até hoje em dia, extremamente bem feito, eficaz, muito forte, com seqüências muito bem feitas. E que até eu acho que tem esse fenômeno, que um filme como Assalto ao Trem Pagador envelhece muito melhor do que um filme como Porto das Caixas.
Hoje é perfeitamente possível assistir a Assalto ao Tem Pagador, continua sendo um filme interessante. Eu talvez não dissesse o mesmo de Porto das Caixas. Então, isso pra mim varia muito. Uma coisa é o filme no momento em que ele é feito e tudo o que está em torno daquilo, outra coisa é 20 anos depois, ou 30 anos, ou mais. Já se passaram quase 40 anos. Ano que vem fariam 40 anos que surgem estes filmes: Cinco Vezes favela, Porto das Caixas, Assalto ao Trem Pagador. E num momento em que o Glauber ainda era o diretor de Barravento, que muito pouca gente tinha visto, não tinha sido lançado comercialmente, tinha ganho prêmio na Tchecoslováquia. Mas apesar disso ele já deitava falação, já comandava esse debate. Ele tinha presença e influência muito grandes, mesmo antes de ser um diretor consagrado, que passou a ser a partir de Deus e o Diabo e depois com Terra em Transe.
"Muitos dos filmes do Cinema Novo envelheceram mal"
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Da relação mágica com o mundo ao mundo mágico do cinema
Dedico essa reflexão ao Kinocélula, e ao que venho aprendendo com os alunos desde que começamos esses encontros na ESPM. Porque além de fazer cinema, uma das melhores escolas de cinema é dar aulas de cinema. Desculpe a redundância do termo, mas é assim. Aprende-se muito passando adiante o que se sabe.
De tantos aprendizados, reflito agora sobre um: o fazer do próprio artista. Aqui não falo do profissional, do técnico, do funcionário. Mas do artista.
Tudo parte, primeiro, de uma relação mágica com a arte. Ninguém que se aventura nesse campo sabe definir racionalmente porque o faz, simplesmente se sente movido por uma força da natureza, às vezes até contrária à razão dos tempos, à praticidade da vida e às crenças vigentes, especialmente as que prezam pela segurança. Não, a arte não é um lugar seguro. Pelo contrário, o lugar para onde vamos é assustador e solitário à primeira vista, e somente se tivermos a firmeza interna de continuar é que encontramos a matéria-prima da concepção genuína. Todo o resto é cópia, e por mais bem realizada que seja, não faz tanta diferença no passar do tempo.
Mas voltemos à relação mágica com a arte. A princípio, quem se aventura primeiramente foi raptado. Em algum momento, seja por um filme, música, uma frase, foi abduzido a esse mundo e voltou diferente. No meu caso, o simples ruído do projetor na sala de cinema já era o portal para alguma felicidade: algo me seria contado, uma história, eu seria magicamente transportada para algum universo. Durante aquele tempo do filme, eu não mais seria eu, mas alguém na tela, em outro lugar, em outro tempo. E essa suspensão dionisíaca me faria sonhar acordada e me levaria também a outros lugares de mim.
Eu poderia continuar assim. Uma amante.
Isso faria de mim uma cinéfila, não uma cineasta.
Mas por alguma razão inexplicável, algo me chamou para ser uma realizadora. E, apesar de toda a mística em torno disso, todo o prestígio criado pelo meio, esse não é um lugar confortável. Porque, para começar, tive que abrir mão da minha relação mágica com o próprio cinema, desvendar o mundo atrás das cortinas, atrás das câmeras. Perceber que as histórias não nascem prontas, que os filmes não se fazem como por encanto, mas às custas de muito suor, trabalho, frustrações, fracassos e, sobretudo, medos. Especialmente o medo de não ser compreendida.
Assim, para me forjar cineasta, tive que abandonar o éden da poltrona do cinema. Tive que me submeter aos ácidos nessa alquimia da transposição de amante a artista. Em vários momentos, precisei acreditar quando ninguém acreditava, nem mesmo uma parte de mim que buscava o caminho mais fácil. Em outros momentos, tive que, humildemente, reconhecer que ainda não havia chegado onde queria, me desapegar do feito e recomeçar. Em vários momentos desisti, e graças a essa correnteza inexplicável que acabei chamando destino, fui jogada de volta ao furioso rio de minhas criações.
Até que, nesse turbilhão, colhi alguns frutos. E ao contrário do que se pensa, eles não são os aplausos. São o silêncio de quem não consegue achar palavras rápidas para definir o que viu, ou melhor, sentiu, ao assistir o resultado de tanta batalha. Porque aplausos rápidos e palavras rápidas vêm de lugares confortáveis, mas quando o espectador é também raptado, volta como que entorpecido.
Nada disso se faz facilmente. Como por encanto. A mágica está na tela, mas realizá-la nos coloca em situação de perder a relação mágica com o mundo. E não estou falando da relação lúdica com o mundo, mas de uma falsa crença de que as coisas serão feitas por si mesmas - um resquício do mundo infantil que ainda carregamos. Olho com esse impulso! É ele quem nos leva aos lugares fáceis, quem nos faz desistir na primeira dificuldade, e, principalmente, quem nos faz distorcer um primeiro impulso inovador, em geral ainda estranho, pelo receio de não ser aceito.
Sinceramente, acho melhor errar feio buscando algo inovador do que acertar fazendo o mesmo com roupagens novas. Porque para cada “acerto”, há muitos fracassos. E só quando perdemos o medo do fracasso, superamos esse medo infantil de não agradar, é que ganhamos a firmeza e a maturidade que um artista verdadeiro necessita.
Por isso, sempre me pergunto se quero continuar nesse caminho. Dá trabalho entrar na noite de si. Dá trabalho lidar com esses medos, angústias. Dá trabalho resistir às crenças de sucesso, dá trabalho recomeçar sempre. Às vezes, em trégua, volto à sala de cinema e me permito mergulhar na magia. E a cada novo rapto, saio cada vez mais inspirada em novamente me meter em novas enrascadas, em um novo projeto.
Muitas vezes me perco, é verdade. Mas em preciosos momentos, percebo um encontro. Esse lugar novo que encontrei em mim reverbera em um lugar novo dentro do outro. Nesse momento, a mágica não é ilusória, é real. Vai além do entorpecimento da sala escura, é um momento que transforma.
É graças a esses momentos que eu continuo. E posso encarar mil fracassos, por mais duros que sejam, para sentir novamente esses instantes de encontro.
por Claudia Pucci
De tantos aprendizados, reflito agora sobre um: o fazer do próprio artista. Aqui não falo do profissional, do técnico, do funcionário. Mas do artista.
Tudo parte, primeiro, de uma relação mágica com a arte. Ninguém que se aventura nesse campo sabe definir racionalmente porque o faz, simplesmente se sente movido por uma força da natureza, às vezes até contrária à razão dos tempos, à praticidade da vida e às crenças vigentes, especialmente as que prezam pela segurança. Não, a arte não é um lugar seguro. Pelo contrário, o lugar para onde vamos é assustador e solitário à primeira vista, e somente se tivermos a firmeza interna de continuar é que encontramos a matéria-prima da concepção genuína. Todo o resto é cópia, e por mais bem realizada que seja, não faz tanta diferença no passar do tempo.
Mas voltemos à relação mágica com a arte. A princípio, quem se aventura primeiramente foi raptado. Em algum momento, seja por um filme, música, uma frase, foi abduzido a esse mundo e voltou diferente. No meu caso, o simples ruído do projetor na sala de cinema já era o portal para alguma felicidade: algo me seria contado, uma história, eu seria magicamente transportada para algum universo. Durante aquele tempo do filme, eu não mais seria eu, mas alguém na tela, em outro lugar, em outro tempo. E essa suspensão dionisíaca me faria sonhar acordada e me levaria também a outros lugares de mim.
Eu poderia continuar assim. Uma amante.
Isso faria de mim uma cinéfila, não uma cineasta.
Mas por alguma razão inexplicável, algo me chamou para ser uma realizadora. E, apesar de toda a mística em torno disso, todo o prestígio criado pelo meio, esse não é um lugar confortável. Porque, para começar, tive que abrir mão da minha relação mágica com o próprio cinema, desvendar o mundo atrás das cortinas, atrás das câmeras. Perceber que as histórias não nascem prontas, que os filmes não se fazem como por encanto, mas às custas de muito suor, trabalho, frustrações, fracassos e, sobretudo, medos. Especialmente o medo de não ser compreendida.
Assim, para me forjar cineasta, tive que abandonar o éden da poltrona do cinema. Tive que me submeter aos ácidos nessa alquimia da transposição de amante a artista. Em vários momentos, precisei acreditar quando ninguém acreditava, nem mesmo uma parte de mim que buscava o caminho mais fácil. Em outros momentos, tive que, humildemente, reconhecer que ainda não havia chegado onde queria, me desapegar do feito e recomeçar. Em vários momentos desisti, e graças a essa correnteza inexplicável que acabei chamando destino, fui jogada de volta ao furioso rio de minhas criações.
Até que, nesse turbilhão, colhi alguns frutos. E ao contrário do que se pensa, eles não são os aplausos. São o silêncio de quem não consegue achar palavras rápidas para definir o que viu, ou melhor, sentiu, ao assistir o resultado de tanta batalha. Porque aplausos rápidos e palavras rápidas vêm de lugares confortáveis, mas quando o espectador é também raptado, volta como que entorpecido.
Nada disso se faz facilmente. Como por encanto. A mágica está na tela, mas realizá-la nos coloca em situação de perder a relação mágica com o mundo. E não estou falando da relação lúdica com o mundo, mas de uma falsa crença de que as coisas serão feitas por si mesmas - um resquício do mundo infantil que ainda carregamos. Olho com esse impulso! É ele quem nos leva aos lugares fáceis, quem nos faz desistir na primeira dificuldade, e, principalmente, quem nos faz distorcer um primeiro impulso inovador, em geral ainda estranho, pelo receio de não ser aceito.
Sinceramente, acho melhor errar feio buscando algo inovador do que acertar fazendo o mesmo com roupagens novas. Porque para cada “acerto”, há muitos fracassos. E só quando perdemos o medo do fracasso, superamos esse medo infantil de não agradar, é que ganhamos a firmeza e a maturidade que um artista verdadeiro necessita.
Por isso, sempre me pergunto se quero continuar nesse caminho. Dá trabalho entrar na noite de si. Dá trabalho lidar com esses medos, angústias. Dá trabalho resistir às crenças de sucesso, dá trabalho recomeçar sempre. Às vezes, em trégua, volto à sala de cinema e me permito mergulhar na magia. E a cada novo rapto, saio cada vez mais inspirada em novamente me meter em novas enrascadas, em um novo projeto.
Muitas vezes me perco, é verdade. Mas em preciosos momentos, percebo um encontro. Esse lugar novo que encontrei em mim reverbera em um lugar novo dentro do outro. Nesse momento, a mágica não é ilusória, é real. Vai além do entorpecimento da sala escura, é um momento que transforma.
É graças a esses momentos que eu continuo. E posso encarar mil fracassos, por mais duros que sejam, para sentir novamente esses instantes de encontro.
por Claudia Pucci
quinta-feira, 10 de abril de 2008
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