Da relação mágica com o mundo ao mundo mágico do cinema

Dedico essa reflexão ao Kinocélula, e ao que venho aprendendo com os alunos desde que começamos esses encontros na ESPM. Porque além de fazer cinema, uma das melhores escolas de cinema é dar aulas de cinema. Desculpe a redundância do termo, mas é assim. Aprende-se muito passando adiante o que se sabe.

De tantos aprendizados, reflito agora sobre um: o fazer do próprio artista. Aqui não falo do profissional, do técnico, do funcionário. Mas do artista.

Tudo parte, primeiro, de uma relação mágica com a arte. Ninguém que se aventura nesse campo sabe definir racionalmente porque o faz, simplesmente se sente movido por uma força da natureza, às vezes até contrária à razão dos tempos, à praticidade da vida e às crenças vigentes, especialmente as que prezam pela segurança. Não, a arte não é um lugar seguro. Pelo contrário, o lugar para onde vamos é assustador e solitário à primeira vista, e somente se tivermos a firmeza interna de continuar é que encontramos a matéria-prima da concepção genuína. Todo o resto é cópia, e por mais bem realizada que seja, não faz tanta diferença no passar do tempo.

Mas voltemos à relação mágica com a arte. A princípio, quem se aventura primeiramente foi raptado. Em algum momento, seja por um filme, música, uma frase, foi abduzido a esse mundo e voltou diferente. No meu caso, o simples ruído do projetor na sala de cinema já era o portal para alguma felicidade: algo me seria contado, uma história, eu seria magicamente transportada para algum universo. Durante aquele tempo do filme, eu não mais seria eu, mas alguém na tela, em outro lugar, em outro tempo. E essa suspensão dionisíaca me faria sonhar acordada e me levaria também a outros lugares de mim.

Eu poderia continuar assim. Uma amante.
Isso faria de mim uma cinéfila, não uma cineasta.

Mas por alguma razão inexplicável, algo me chamou para ser uma realizadora. E, apesar de toda a mística em torno disso, todo o prestígio criado pelo meio, esse não é um lugar confortável. Porque, para começar, tive que abrir mão da minha relação mágica com o próprio cinema, desvendar o mundo atrás das cortinas, atrás das câmeras. Perceber que as histórias não nascem prontas, que os filmes não se fazem como por encanto, mas às custas de muito suor, trabalho, frustrações, fracassos e, sobretudo, medos. Especialmente o medo de não ser compreendida.

Assim, para me forjar cineasta, tive que abandonar o éden da poltrona do cinema. Tive que me submeter aos ácidos nessa alquimia da transposição de amante a artista. Em vários momentos, precisei acreditar quando ninguém acreditava, nem mesmo uma parte de mim que buscava o caminho mais fácil. Em outros momentos, tive que, humildemente, reconhecer que ainda não havia chegado onde queria, me desapegar do feito e recomeçar. Em vários momentos desisti, e graças a essa correnteza inexplicável que acabei chamando destino, fui jogada de volta ao furioso rio de minhas criações.

Até que, nesse turbilhão, colhi alguns frutos. E ao contrário do que se pensa, eles não são os aplausos. São o silêncio de quem não consegue achar palavras rápidas para definir o que viu, ou melhor, sentiu, ao assistir o resultado de tanta batalha. Porque aplausos rápidos e palavras rápidas vêm de lugares confortáveis, mas quando o espectador é também raptado, volta como que entorpecido.

Nada disso se faz facilmente. Como por encanto. A mágica está na tela, mas realizá-la nos coloca em situação de perder a relação mágica com o mundo. E não estou falando da relação lúdica com o mundo, mas de uma falsa crença de que as coisas serão feitas por si mesmas - um resquício do mundo infantil que ainda carregamos. Olho com esse impulso! É ele quem nos leva aos lugares fáceis, quem nos faz desistir na primeira dificuldade, e, principalmente, quem nos faz distorcer um primeiro impulso inovador, em geral ainda estranho, pelo receio de não ser aceito.

Sinceramente, acho melhor errar feio buscando algo inovador do que acertar fazendo o mesmo com roupagens novas. Porque para cada “acerto”, há muitos fracassos. E só quando perdemos o medo do fracasso, superamos esse medo infantil de não agradar, é que ganhamos a firmeza e a maturidade que um artista verdadeiro necessita.

Por isso, sempre me pergunto se quero continuar nesse caminho. Dá trabalho entrar na noite de si. Dá trabalho lidar com esses medos, angústias. Dá trabalho resistir às crenças de sucesso, dá trabalho recomeçar sempre. Às vezes, em trégua, volto à sala de cinema e me permito mergulhar na magia. E a cada novo rapto, saio cada vez mais inspirada em novamente me meter em novas enrascadas, em um novo projeto.

Muitas vezes me perco, é verdade. Mas em preciosos momentos, percebo um encontro. Esse lugar novo que encontrei em mim reverbera em um lugar novo dentro do outro. Nesse momento, a mágica não é ilusória, é real. Vai além do entorpecimento da sala escura, é um momento que transforma.

É graças a esses momentos que eu continuo. E posso encarar mil fracassos, por mais duros que sejam, para sentir novamente esses instantes de encontro.

por Claudia Pucci

quinta-feira, 10 de abril de 2008

entrevista com Ismail Xavier

Ismail Xavier:
O cinema e os filmes ou doze temas em torno da imagem

Entrevista a Pedro Plaza Pinto, Mariana Baltar Freire, Fernando Morais e Lécio Augusto Ramos*

Niterói/Rio de Janeiro/São Paulo março/abril/outubro de 2002

"Tudo se empobrece quando se fala do cinema sem falar dos filmes.
Não se pode resenhar conceitos dos grande autores e observar os filme
tateando com uma bengala e fazendo ouvidos de mercador."

1. Biografia e Trajetória
Queríamos inicialmente desenhar um perfil de sua trajetória profissional. Primeiro, alguns dados biográficos que você achar pertinentes. Depois: como se deu a sua aproximação com o cinema? Como foi a sua formação na USP? Que influências (brasileiras e estrangeiras) foram decisivas para você? (Paulo Emílio, Antônio Cândido e a geração de ouro da FFCL da USP, etc.) Você certa vez confidenciou que atua numa área crítica, de reflexão, e não na área da pesquisa em fontes primárias (polivalência, por exemplo, que podemos atribuir a Jean-Claude Bernardet, a Maria Rita Galvão, a Carlos Roberto de Souza, a João Luiz Vieira, entre outros. Isto significaria que você prefere por opção trabalhar num campo mais teórico, mais reflexivo por vocação ou opção pessoal?

RESPOSTA
A minha aproximação com o cinema se deu quando entrei na USP, em 1965, para estudar engenharia. Por influência de amigos com quem trocava idéias sobre tudo, já desde a época do colegial, passei a freqüentar salas de cinema de arte (como o Cine Bijou) e entrei para a Sociedade Amigos da Cinemateca, em 1966. Como sócio da SAC pude ouvir as pessoas ligadas à Cinemateca e que compunham um pensamento cinematográfico de esquerda: Paulo Emilio, Jean-Claude Bernardet, Rudá de Andrade, João Batista de Andrade, Francisco Ramalho Jr., João Silvério Trevisan. No entanto, o primeiro curso sobre cinema que fiz se deu no Foto Cine-Clube Bandeirantes, organizado por Adhemar Carvalhaes, que fazia parte da crítica em oposição ao grupo da Cinemateca. A parte interessante do curso contou com a participação de cineastas como Roberto Santos , então trazendo o prestígio de quem havia feito a obra-prima A hora e a vez de Augusto Matraga, Anselmo Duarte e Walter Hugo Khouri, o que, com exceção do Roberto Santos, nosso herói naquele momento, nos colocava (aos alunos) no terreno distante do Cinema Novo. Houve uma experiência curiosa de cinefilia: visitar os estúdios da Vera Cruz onde Khouri filmava o seu episódio de As cariocas. Este lado cinéfilo foi sempre, no meu caso, suplantado pelo fato de que tal aproximação estava articulada ao interesse pela política. Dentro do movimento estudantil, ainda em 1966, atuei bastante na área cultural do centro acadêmico da Politécnica-USP e cheguei a organizar, com um amigo da faculdade de direito, o Fernando Albino, um ciclo sobre cinema brasileiro então contemporâneo (que envolvia, Khouri, Anselmo Duarte, o Cinema Novo), ocasião especial para conhecer alguns críticos de cinema de São Paulo: Rogério Sganzerla, Paulo Ramos, Maurice Capovilla. O Trevisan ajudou na composição do ciclo; ele trabalhava na Cinemateca, sendo muito ligado ao Jean-Claude Bernardet, o que fez o ciclo ter um viés de valorização do filme do Person, São Paulo S/A. Neste momento, houve também o encontro com Gustavo Dahl que passava por São Paulo no dia da exibição de Barravento, e topou fazer a apresentação. O diálogo com cineastas e líderes da MPB era fácil e as coisas eram resolvidas sem maiores formalidades, inclusive para shows de música na Universidade, onde também tive uma experiência que foi decisiva, me colocando em contato com Chico Buarque, Geraldo Vandré e Gilberto Gil. Em 1967, a ECA se inaugura; faço parte da primeira turma. Começamos com Rudá de Andrade e Jean-Claude, depois Paulo Emilio, Roberto Santos e Maurice Capovilla. Jean-Claude e Paulo Emílio foram os interlocutores-chave no binômio 67-68, antes da cassação de Jean-Claude depois do Ato nº 5. De qualquer forma, continuamos em contato pois, entre outras atividades, havia um grupo de estudantes que passou a fazer crítica de cinema no Diário de São Paulo, entre julho de 68 e junho de 70, grupo de que eu era o coordenador, conforme decisão de Paulo Emilio, Jean-Claude e Rudá. Maria Rita Galvão passou a dar aulas na ECA mais tarde, não tendo um contato sistemático com a minha turma, mas já compondo, para mim, o grupo central de diálogo. Formado na ECA, entro para o Mestrado na Letras, na área de Teoria Literária, em 1971, com a orientação de Paulo Emilio, num diálogo que começa a sua fase mais rica para mim. Conheço, por outro lado, Antonio Cândido; seus cursos compõem até hoje a maior referência para o meu trabalho de análise. Este é um período decisivo de formação. Como orientando do Paulo Emilio, eu participava de uma reunião periódica na casa dele, em que discutíamos os projetos de pesquisa em história do cinema brasileiro, junto, entre outros, com Maria Rita, Jean-Claude e Carlos Roberto de Souza. Foi um momento em que a disponibilidade de tempo permitiu que eu seguisse o mestrado, preparasse a tese e seguisse cursos na filosofia, onde foi fundamental a amizade com Marilena Chauí. Ela foi decisiva, também, no descongelamento de meus referenciais teoricistas e quase positivistas, resultado da primeira profissão (professor de Física em cursinho), da formação estruturalista que tive na parte extra-cinema da ECA (muita linguística, antropologia estrutural e teoria da comunicação) e do "positivismo" althusseriano (fui dos que leu muito Althusser na época de movimento estudantil - e a noção de prática teórica, teve seu papel no meu trajeto entre 1968 e 1971, ano que Marilena entra em cena). Neste ítem "formação", digamos que, além do terremoto causado pelo binômio teoria literária-filosofia, próprio a este período 1971-75, outro momento importante foi o de New York, com destaque para o diálogo com Annette Michelson, na New York University, quando aprendi muito desta análise formal que faz parte do meu trabalho, e para o diálogo com Jay Leyda, no plano da pesquisa em história, quando participei do Projeto Griffith, em 1976-77 (o mesmo do qual participou João Luiz Vieira a partir de 1978). Esta foi uma experiência de ver nascendo a nova história de Tom Gunning, Charles Musser, André Gaudreault, Noel Burch (que passou pela NYU em 1976), entre outros.

Vocês têm razão quando lembram que, até aqui, o trabalho de historiador, no sentido de pesquisa em arquivo com levantamento original e sistematização de fontes primárias, não tem sido a tônica do meu trabalho. Mas houve circunstâncias em que tive este tipo de experiência, pela natureza do objeto estudado e pela ajuda de outras pessoas (primeiro Paulo Emílio, que foi o mestre fundamental ao longo de 7 anos, na aula, na orientação do mestrado, no seminário na casa dele, na Cinemateca). Alías, Paulo Emílio, com a sagacidade de sempre, percebeu, no início do mestrado, que não podia me transformar, de imediato, em um pesquisador do cinema brasileiro no sentido que tal palavra tinha em 1971 (recorte de tipo historiográfico, com ênfase à história da produção, com pouca análise dos filmes), e propôs que eu canalizasse meu claro interesse pelo debate ideológico-político e pela teoria na direção de um balanço histórico dos primórdios do pensamento cinematográfico. Daí surgiu o projeto França-Brasil, emergência da teoria lá e cá, influência dos franceses da vanguarda aqui, nos modernistas, e análise do pensamento mais avançado no Brasil: o do FAN, com destaque para Octavio de Faria e Plínio Sussekind Rocha. Paulo Emílio me passou tudo o que tinha sobre o Chaplin Club, e a Cinemateca abriu a coleção de Cinearte; na USP, pesquisei as revistas modernistas. Há algo aí de trabalho com fontes primárias numa iniciação à história da crítica cinematográfica. A generosidade de Alex Viany completou um primeiro quadro: ele me colocou nas mãos uma coleção de recortes e transcrições datilografadas de revistas como A tela e Palcos e Telas, um material que me ajudou a montar um capítulo do trabalho. O que não fiz de moto próprio foi uma pesquisa sistemática que poderia levar a um avanço na história da crítica feito a partir da pesquisa em periódicos (do tipo que Arthur Autran fez com Pedro Lima e que vocês* têm feito com Cinearte). Em 1975, quando eu estava em Nova York, o interesse pela formação da narrativa me levou à velha pergunta pela origem do cinema clássico. E Jay Leyda estava dando os seminários sobre Griffith. Sopa no mel. Aí pude ter o sentimento de revelação que se tem quando se abre um novo arquivo, pois vi junto com o pessoal de lá (o Charles Musser, em especial, pois íamos juntos à Biblioteca do Congresso para trabalhar, ele pesquisando Porter, eu Griffith) todos os filmes dos primeiros anos da carreira de Griffith. Ou seja, neste caso fiz trabalho de historiador, concentrado no exame filme a filme, do que resultou um artigo sobre a evolução da montagem no cinema de Griffith entre 1908 e 1909, seus primeiros cem filmes, artigo só publicado mais tarde na Itália, na Revista Griffithianna, de Gênova, num número especial organizado por Jay. Ainda em Nova York, montei o projeto de Tese sobre as alegorias no cinema brasileiro dos anos 60 (que terminou, em sua primeira versão, em 1982, quando completei o doutorado lá). A partir daí, concentrei-me no que mais interessa: trabalhar com cinema moderno, e me coloquei como tarefa desenvolver a análise de filmes, tipo de trabalho que não estava desenvolvido no Brasil (basta ver a bibliografia sobre cinema e o tipo de análise então existente, quando esta última ganhava relevo). O resultado disto é conhecido: as análises formais e o esforço de extrair o melhor de tal método de estudo imanente da imagem-som, o que foi um gesto deliberado de convite, de minha parte, para que se desse maior ênfase ao conhecimento detalhado dos filmes, para contrastar com o que eu achava um historicismo excessivo: acumulação de dados em torno dos filmes e pouco exame das obras.

Razão maior disto tudo: era preciso demonstrar o valor estético do cinema moderno brasileiro, e de Glauber em particular, o que só seria possível fazendo o que estudos mais sistemáticos não haviam feito: articular análise estilística e interpretação, mostrando qual cinema cada cineasta inventou e porque; ou melhor, com que implicações no plano do sentido e das relações entre cinema, política e história. Para tanto, procurei combinar a minha formação cultural e teórica obtida com os mestres da revista Clima - Paulo Emilio e Antonio Candido - com o choque de empirismo norte-americano que ainda deixa traços na minha preocupação em descrever (o que não é um ato inocente) e em chamar os exemplos que evidenciam uma "verdade teórica" apenas enunciada, o que, em termos de crítica, significa dizer onde, no detalhe do filme, se mostra como imagem e som "produzem" o sentido afirmado. O esforço foi então o de apurar a análise formal, pois é na forma que procuro encontrar os nexos entre cinema e sociedade, estética e política, incorporando, enfim, uma tradição que, no Brasil, passa por um crítico como Roberto Schwarz e, no contexto novayorquino, pelos que tinham sido alunos de Clement Greenberg, embora não sejam hoje seus repetidores (como é o caso de Annette Michelson que, com Rosalind Krauss, fundou, em 1976, a revista October). Acumular e examinar de forma sistemática a documentação em torno dos filmes ficou para segundo plano (mesmo porque isto era algo que outras pessoas estavam fazendo). Era preciso testar o alcance e os limites da análise imanente (o que podem dizer as imagens?) e evitar o que acho o pior: ver nos filmes apenas aquilo que os próprios cineastas dizem que está lá, ou apenas aquilo que o elenco de idéias que marcam um movimento estético definem a priori, confundindo intenções ou proclamações ideológicas com a dinâmica efetiva da linguagem, coisa que muita gente "escolada" ainda insiste em fazer.
Enfim, depois desta longa narrativa, devo responder que sim, não me pautei por seguir o caminho usual da pesquisa histórica, por todos os títulos fundamental e indispensável; mas digo também que não me afastei de todo da questão, pois os filmes são também fontes primárias por excelência se a meta é avaliar a força de uma proposta estética, a especificidade de uma experiência cultural e seu valor quando posta em cotejo com outras. Mesmo que o objetivo seja examinar o papel das idéais e a validade de uma postura crítica, há que se confrontá-las com o objeto que produzem ou que interpretam. Ou seja, tudo se empobrece quando se fala do cinema sem falar dos filmes. Não se pode resenhar conceitos dos grande autores e observar os filme tateando com uma bengala e fazendo ouvidos de mercador.

2. Obra
De SÉTIMA ARTE: UM CULTO MODERNO (Ed. Perspectiva), até o recente O CINEMA BRASILEIRO MODERNO, sua obra, majoritariamente dedicada ao cinema brasileiro, tornou-se uma referência para os estudos cinematográficos do país. Você faria hoje alguma reavaliação, alguma revisão crítica de alguma de suas obras, no sentido de reconhecer em algum momento que tenha assumido uma perspectiva teórica ou crítica que hoje não lhe pareça mais "sustentável"?

RESPOSTA
Em termos de estrutura, o livro que me incomoda é o Sétima Arte. E explicar porque é já uma forma de engatar na resposta anterior. Paulo Emilio me deu uma sugestão que, em verdade, para melhor entendedor, deveria me levar a uma concentração do trabalho no pensamento brasileiro. Mas eu ainda estava ligado demais na questão de "origem da teoria do cinema" e não abri mão de Canudo, Epstein e outros como objetos de um estudo com validade própria. A divisão do livro em duas partes - primeiro a teoria na França, depois a análise de três contextos de crítica e teoria no Brasil - espelha a história do trabalho que começou como uma exposição didática de noções, algo que era mais adequado ao exame da teoria francesa. Esta era menos acessível na época e não havia estudos sistemáticos mesmo na França, o que favorecia, num mestrado, a apresentação de conjunto, sem detalhamentos da história de algumas noções e sua relação com a produção cinematográfica. Tal insistência definiu um padrão para o trabalho que hoje não me parece a melhor opção para a apresentação do pensamento cinematográfico brasileiro. Talvez o melhor teria sido eu me concentrar na pesquisa histórica e fazer com que a lógica do trabalho saísse do corpo a corpo com a crítica brasileira, de modo a só me referir, na exposição, ao contexto francês quando fosse necessário explicar alguma noção vinda de lá. Para a minha formação, isto teria alcançado maior rendimento, pois teria aprofundado melhor minha relação com o contexto brasileiro no período.

Quanto a O Discurso Cinematográfico, claro que o ponto de vista organizador seria outro agora. A questão da desconstrução não teria tanto espaço, e também haveria mais pormenores no aspecto pedagógico (o livro é às vezes difícil para o iniciante). Algumas frases são por demais simplificadoras (como a sobre o documentário - ver questão 11 - e sobre a questão do real e da ideologia.). O que me "salvou" no envolvimento com os exageros da época foi meu "estilo indireto livre". Este permite assumir as vozes do tempo no meu próprio texto, sem, no entanto, assumir as afirmações como verdade inconteste - vide as reticências quanto ao desconstrucionismo, e o que ainda considero minha forma equilibrada, com as nuances do estilo indireto, de expor formulações bem datadas.

Quanto aos livros de análise do cinema moderno, a forma como foram lidos me ensina o quanto eu deveria ter sido mais didático nas introduções. Como eu estava desconfiado de resenhas teóricas e julgava que o próprio movimento das análises seria autoexplicativo, eu disse pouco sobre o meu "método" ou mesmo sobre as premissas. É enorme o número de teses que se estendem em introduções que são meras resenhas de teorias e depois praticam uma análise do objeto que pouco tem ver com a introdução. Certo colonialismo teórico e certo academismo estéril têm produzido, às vezes, teses de pouca valia justamente por isto. Às vezes, é mais fácil para o jovem pesquisador se "segurar" na resenha teórica do que efetivamente dizer algo de original e pertinente sobre os filmes. No pior dos casos, a introdução e o uso de conceitos de prestígio funcionam como pura maquiagem que encobre a anemia do crítico. Em contraposição a isto, fui lacônico e perdi a oportunidade de me antecipar a objeções tolas que às vezes aparecem, ou mesmo a mal entendidos bem intencionados. Na introdução do Sertão mar, eu deveria ter sido mais incisivo na discussão do que é análise imanente, do que é narrador no cinema e na literatura, do que é estilo indireto livre, e de quais são, afinal, as implicações do uso que faço da alegoria como categoria de interpretação. No Alegorias do subdesenvolvimento, eu poderia ter incluído o meu texto "Alegoria, modernidade, nacionalismo" que foi escrito em 1984 e publicado numa separata da FUNARTE pelo Adauto Novaes; esse texto explica de forma didática o que a introdução do livro apenas resume. Mas eu estava envolvido em outras discussões sobre as relações do cinema com a cultura no Brasil. Hoje, estou convencido de que, às vezes, vale a pena explicitar as "questões de método", mesmo que isto adie um pouco o contato com o objeto. O mesmo vale para certas categorias que são comuns na referência a Glauber, como o barroco. Vejam como fui discreto na referência a Benjamin na análise de Terra em Transe, coisa que eu deveria ter acentuado porque era uma forma de deixar mais claro porque só falei em barroco quando estava em pauta a idéia do "drama barroco", com todas as implicações políticas de tal noção.

3. O Discurso cinematográfico e A experiência do cinema, hoje.
Vinte e cinco anos depois da primeira edição, como você revê "O Discurso Cinematográfico", que é, achamos que sem contestação, a primeira obra de autor brasileiro sobre teoria cinematográfica, num sentido rigoroso, o que nos leva não a excluir, mas relativizar o alcance de alguns predecessores no âmbito da produção de conceitos em cinema? Em que direção caminharam as "estéticas cinematográficas"? Como você vê a aceitação, a inserção deste livro nos estudos cinematográficos desde então? Em relação à antologia A EXPERIÊNCIA DO CINEMA, se você fosse convidado para organizar uma nova edição, que outros textos a comporiam e por quê? Você manteria a mesma estrutura ou faria algumas (ou muitas) modificações? Qual seria a linha condutora de um novo "posfácio" a O DISCURSO CINEMATOGRÁFICO?

RESPOSTA:
Como observei, O discurso cinematográfico está muito pautado pelo debate da época em torno do estatuto ideológico do cinema "em geral" - do "dispositivo", como dizia Baudry, ou "apparatus" como traduziu a teoria anglo-americana. Como era importante a relação entre cinema e política, e como era importante a especificidade da análise estética, eu me alinhei "grosso modo", e evitando o que achava excessos, com a forma muito peculiar com que o descontrucionismo foi incorporado à crítica cinematográfica (visto pela esquerda que pensava, não em Derrida, mas em Brecht e na afirmação de sentidos, não apenas nas operações de suspensão do sentido). Resultou o privilégio à oposição entre opacidade e transparência, onde o primeiro termo tinha mais valor do que o segundo. O mérito do livro foi adotar um critério claro para colocar uma ordem e uma hierarquia nas teorias apresentadas, tanto mais valorizadas quanto mais contribuíssem para a concepção de cinemas alternativos ao cinema clássico industrial (alvo maior da crítica). O livro foi escrito em Nova York, sob o impacto da descoberta do que era afinal o cinema underground e sua riqueza, e do que eram as idéias que o alimentavam dentro da tradição modernista, o que permitia ampliar o horizonte de quem tinha uma formação "européia" (acabei sendo um dos primeiros a ir para os Estados Unidos e ampliar nossas referências). O livro foi escrito com uma tônica de resenha própria ao gênero (o que às vezes resulta esquemático), mas o decisivo era ter um ponto de vista contemporâneo para colocar as teorias em perspectiva, lado mais vivo do livro, pois se definiu uma lógica no panorama traçado e se deixou nítida a minha posição em favor de experiências do cinema moderno, com eleição de Godard como paradigma maior. Mas falta, de qualquer modo, nuance em certas passagens. O cinema clássico é mais complicado. Não discuti a questão dos gêneros. E o que falei sobre o documentário é genérico demais, com algumas reduções (ver questão 12).

Rever? Voltando lá atrás, eu teria melhor explicado as categorias descritivas usadas por todos nós quando falamos dos filmes (os termos da dita "linguagem cinematográfica"), para tornar mais acessível a discussão estética que domina o livro. Falando a partir de 2002, é impossível imaginar uma empreitada semelhante. Os focos de teoria se multiplicaram, e também as problemáticas, ou seja, o conjunto de problemas que cada teoria formula e procura resolver. Diante do múltiplo atual, eu seria obrigado a uma escolha do problema a ser trazido ao centro. Precisaria pensar mais. No entanto, tenho certeza de que acentuaria a importância da história no debate, falaria mais desta incidência das novas pesquisas sobre a formulação de conceitos, e também da incidência dos problemas que os novos filmes suscitam. Não teria hoje UM ponto de vista teórico, pois as reflexões existentes estão tentando discutir problemas diferentes.

Quanto ao pósfácio possível, em termos práticos, já enfrento a questão. O Fernando Gasparian (Paz e Terra) quer republicar o livro desde que atualizado, ou seja, algo como um capítulo a mais para dizer o que houve depois. Não dá. Seria o desequilíbrio total, pois os últimos 25 anos não seriam apenas mais um capítulo. Há novos conceitos e nova configuração, o que exige uma nova forma de organizar a exposição. Vocês mesmos trazem à conversa os novos influxos na filosofia do cinema (Deleuze na França, a filosofia analítica e os discípulos de Wittgenstein nos Estados Unidos, Fredric Jameson e sua análise marxista do contemporâneo) e a nova teoria do documentário. E há o debate entre a estética e a sociologia da cultura, debate renovado agora com a consolidação do "cultural studies" no mundo anglo-americano e sua rejeição no mundo francês. Ênfase deveria ser dada aos estudos de recepção, onde se pode inserir a intervenção dos cognitivistas em seu debate com a psicanálise. Hoje estou mais atento às questões da retórica da imagem (em função, claro, de minha lida com a alegoria) e a outras formulações do problema, como a teoria do "figural" de Philippe Dubois. E também estou mais atento à teoria dos gêneros (seja no sentido clássico - lírica, épica, dramática -, seja no sentido das classificações da indústria). Muito do que tenho feito procura explorar as relações de afinidade entre melodrama e cultura visual moderna; tenho reiterado a idéia de que as relações entre o espetáculo e as matrizes melodramáticas é mais profunda do que se reconhece. O que repercute na avaliação crítica do cinema clássico.

Nos anos 70, a minha caracterização deste cinema não é incorreta, mas é sumária. Não dá conta de muitos problemas que agora ganham maior nitidez: o papel das "atrações" (Tom Gunning) dentro dele, as tensões entre o narrativo e o visual, a estrutura e função da trilha sonora. As estratégias do moderno foram incorporadas ao cinema corrente, e a retórica da imagem se alterou num contexto que inclui novos gêneros e tende a potencializar efeitos de um mundo de artifícios assumido como tal. O cinema industrial mobilizou a alta tecnologia para o adensamento dos efeitos especiais que colocam a força da imagem numa esfera autônoma. Um enorme narcisismo (o mesmo de que se acusava a vanguarda) faz da técnica o espetáculo, tornando mais complicada a questão da transparência, embora esta permaneça, uma vez que as regras de continuidade (e motivação) continuam valendo, assim como os paradigmas extraídos da mitologia. O fetichismo se torna um conceito mais decisivo na discussão da imagem e do som hoje.

Quanto a A experiência do cinema, não pensei em uma nova edição, se entendida como atualização. O livro tem sua função e continuará tendo como está, sem tudo o que veio depois de 1983. Fazer outra antologia agora não está nos meus projetos, pois estou com a agenda saturada. A escolha de textos leva tempo, mesmo quando você sabe que tendências devem estar representadas. E existe a questão de não repetir o que já está encaminhado de forma aceitável em outras antologias. Não tive tempo, por exemplo, de examinar com cuidado a antologia organizada pelo Robert Stam e o Toby Miller citada por vocês: ela é admirável, num exame preliminar, pela abrangência e pela pedagogia. Há uma outra antologia deles também editada pela Blackwell - A Companion to Film Theory - que inclui um texto meu sobre alegoria e história no cinema. Esta eu conheço melhor. Mas não sei se é o caso de traduzir. Este jogo de antologias é interminável. Mesmo no caso da publicação em 1983, tive frustrações. Por exemplo, eu planejara ter os textos da Communications nº 23 (1975), mas houve outra edição em português que atropelou a minha. Gostaria de ter dado mais espaço para a definição, dentro de diferentes perspectivas, do cinema moderno (algo de Burch cujo livro saiu depois pela Perspectiva, o texto de Pasolini sobre o cinema de poesia).

Para terminar, devo dizer que a coleção da Cosac & Naify - Cinema, teatro e modernidade - expressa o recorte que me interessa fazer agora, mais voltado para as implicações teóricas da pesquisa dos historiadores e dos estetas, como Jacques Aumont, que pensam o cinema em relação a outras artes. A premissa maior, neste sentido, viria da constatação - comum a franceses e anglo-americanos - de que a Grande Teoria do cinema está em crise como campo unificado de questões. Vejam o número da revista da Marie-Claire Ropars-Wuillemier, do Pierre Sorlin e da Michèle Lagny, Hors Cadre - o nº 6, se não me engano - do final dos anos 80, sobre a crise da teoria. E o que tem pautado as explorações de Bellour no terreno da "entre-imagem", as explorações de Philippe Dubois na questão da figura, e o movimento em direção a uma revisão da estética - em que se insere a questão do cinema - feito por Jacques Aumont. Nos Estados Unidos, há a antologia Post-Theory dos cognitivistas, supondo enterrada (ou desejando enterrar) a teoria do "dispositivo", esta apoiada na psicanálise, como o último grande esforço (frustrado) de unificação teórica depois das tentativas dos estruturalistas.

4. Som
A antologia A EXPERIÊNCIA DO CINEMA fecha com um texto sobre o som: o de Mary Ann Doane, A voz do cinema: a articulação de corpo e espaço. Os anos seguintes à edição de A EXPERIÊNCIA DO CINEMA trouxeram um espaço maior para a discussão sobre o som no cinema, que perpassou a década de 1980 e adentrou os 1990. De um lado do Atlântico, houve o grande empreendimento de Michel Chion, com os vários volumes dedicados exclusivamente ao estudo do som nos filmes; do outro, o esforço compilatório de pesquisadores americanos, cenário em que se destaca Rick Altman, que tem obra significativa quanto a uma revisão do advento do som no cinema, bem como à desconstrução dos pressupostos através dos quais o som foi relegado a um papel secundário que se cristalizou enquanto os campos da teoria e da análise fílmicas se consolidavam. A se fazer uma compilação que compreendesse os anos posteriores ao fechamento da edição original, tal corpo teórico, que trouxe à tona a discussão sobre o som, teria espaço? Ou seja, teria, na sua opinião, relevância suficiente para tanto?

RESPOSTA:
A questão do som no cinema foi, durante muito tempo, o ponto cego da teoria. Nos anos 80, tivemos o grande salto na sistematização e nas pesquisas históricas: Michel Chion e Rick Altman, nos aspectos mais gerais, como vocês bem lembram, e uma quantidade grande de estudos sobre a música no cinema clássico e sobre a as relações entre voz e imagem a partir das questões postas pela narrativa (voz over) no filme noir e por certas experiências do cinema moderno francês (Tati, Godard, Duras, Resnais, Robbe-Grillet). Chion mesmo trabalhou muito bem a questão da voz desde Fritz Lang, cunhando a noção de "acousmatique", para se referir ao som da voz que não tem corpo e leva a todo tipo de interrogação quanto ao seu lugar de emissão. Aliás, esta questão do elemento que procura o "seu lugar" é central para a teoria de Chion a propósito do som no cinema, pois ele descarta a idéia de "banda sonora" como um espaço coerente, com lógica e estrutura próprias, que daria "abrigo" e sentido aos elementos sonoros presentes num filme. As observações de Chion sobre as relações entre o espetáculo cinematográfico e o teatro, ou a ópera, devem ser mais exploradas, bem como tudo o que a teoria do melodrama, mais desenvolvida na Inglaterra e nos Estados Unidos, tem lembrado na ênfase que dá a estas mesmas afinidades que aproximam o cinema narrativo-dramático da tradição do palco.
Claro que isto ajuda, e deve ser estudado com maior rigor. Mas, afora as classificações, é nítido, em termos estéticos, que os cineastas estejam à frente na proposição de questões interessantes, e isto desde Eisenstein com a sua noção de "montagem vertical", inspiradora de muita coisa, mesmo que o pessoal de música tenha restrições a uma das formas do "vertical" - o contraponto sonoro. Em verdade, a questão da música no cinema - seja enquanto presença sonora efetiva, seja enquanto metáfora estrutural - inibe a maioria dos críticos, pois a música exige competência específica para a análise (e o lado técnico dos trabalhos sobre Bernard Herrmann, como o de Graham Bruce, e sobre outros compositores confirma isto). Como, por esta via, há limites claros, cada um procura explorar o caminho mais ajustado à sua formação. Eu, por exemplo, me concentro na questão da voz e seu papel na narrativa em função da teoria literária, o que acabou marcando minhas análises de filmes desde os tempos da lida com o cinema de Glauber no Sertão Mar. Curiosamente, só sistematizei melhor, em termos teóricos, o que já estava presente "em estado prático" no meu texto sobre Deus e o Diabo, quando fiz meu texto sobre o São Bernardo ["O olhar e a voz: a narração multifocal no cinema e a cifra da história em São Bernardo", publicado na revista Literatura e Sociedade nº 2, 1996]. Só aí - e também no texto "Parábolas cristãs no século da imagem" [revista Imagens nº 5, 1995] - ficou explícito o problema da narração multi-focal no cinema (ponto de vista da câmera, mise-en-scène, vozes, música, etc...) e o que se pode derivar daí na análise da diferença entre o cinema clássico e o moderno. Enfim, este é um terreno muito rico e pouco estudado, que pede maior empenho de todos nós que nos inserimos numa cultura em que a música popular ocupa um lugar central e tem uma interação forte com o cinema, sem contar a importância das adaptações literárias em que vem a primeiro plano a questão do narrador e da voz-over.

5. Antologias
Ultimamente, muitas antologias de teoria do cinema têm aparecido no mercado editorial internacional. Quais as que você destacaria como as mais importantes para o campo dos estudos cinematográficos? (Robert Stam, por exemplo).

RESPOSTA:
Claro que vou esquecer muita coisa. De qualquer modo, além das duas antologias de Robert Stam e Toby Miller, que ainda pensam o problema da reflexão sobre o cinema em geral numa perspectiva pedagógica, com um apanhado capaz de sugerir uma história das teorias, há antologias que afirmam uma perspectiva de trabalho bem definida, como o Post-Theory: Reconstructing Film Studies, organizado por David Bordwell e Noel Carroll [University of Wisconsin Press, 1996], livro de defesa dos pressupostos cognitivistas. A tônica agora é esta, ou seja, a antologia que afirma um programa de trabalho ou um recorte temático, ou um problema, sempre com intersecções entre os campos: cinema e filosofia, cinema e história, cinema e novas tecnologias, cinema e teoria dos gêneros dramáticos, cinema e feminismo, cinema e pintura, cinema e teatro, ou cinema e melodrama. Inspirados em Walter Benjamin e Georg Simmel, Vanessa Schwartz e Leo Charney organizaram a excelente antologia, O cinema e a invenção da vida moderna, que inaugurou a coleção que dirijo para a Editora Cosac & Naify. Num movimento paralelo ao de Schwartz e Charney, Dudley Andrew organizou The Image in Dispute: Art and Cinema in the Age of Photography [University of Texas Press, 1997]. Há uma imensidade editorial em torno do "cultural studies" e do multiculturalismo; neste caso, o melhor é começar pelo livro do Robert Stam e da Ella Shohat, Unthinking Eurocentrism; Multiculturalism and the Media [Routledge, 1994]. Thomas Elsaesser tem uma excelente síntese da questão do cinema no início do século: Space, Frame, Narrative [BFI, 1990]. Sobre os gêneros da indústria, há a antologia de Nick Browne: Refiguring American Film Genres: Theory and History [University of California Press, 1998]. No plano da reflexão estética mais adensada, Jacques Aumont organizou, a partir de seminários da Cinemateca Francesa, uma série de excelentes antologias concentradas em diferentes temas, todas publicadas pela própria Cinemateca (destaco a que se concentra em Jean Epstein, a que tematiza "a invenção da figura humana no cinema", e a que discute a noção de "mise-en-scène" - esta última, aliás, publicada no ano passado na coleção organizada pelo Philippe Dubois para uma editora belga, a De Boeck Université). Para terminar, aí vão referências no campo das relações entre cinema e história: The Historical Film: History and Memory in Media [org. Marcia Landy, Rutgers University Press, 2000], De l'histoire au cinéma [org. Antoine de Baecque e Christian Delage, Éditions Complexe, 1998], The Persistence of History: Cinema, Television and the Modern Event [org. Vivian Sobchack, Routledge, 1996] e Revisioning History: Film and the Construction of a New Past [org. Robert Rosenstone, Princeton University Press, 1995].

6. Teoria, Crítica e História do Cinema no Brasil
Como você vê, dos anos 1970 para cá, a inserção da experiência do cinema como pauta para os estudos acadêmicos no Brasil? Quais foram os "becos sem saída", "as encruzilhadas" e os "novos caminhos"? Qual é a herança de uma crítica estética participante, política, nos estudos de cinema?

RESPOSTA:
Esta inserção ajudou a desenvolver o que exige trabalhos mais sistemáticos de pesquisa, como os voltados para a história do inema brasileiro, embora não na intensidade que se esperava há 20 anos. Acho que tais estudos estão menos representados no espectro acadêmico hoje do que deveriam, havendo maior concentração deles no eixo Rio-São Paulo, onde estão também as duas cinematecas e os principais arquivos (como o da Cinédia, como vocês sabem). Outra conseqüência da consolidação dos estudos acadêmicos na área foi a maior circulação de teorias, mais propriamente do que o debate teórico, pois as diferentes opções coexistem havendo pouquíssimas ocasiões para um cotejo no bom sentido do termo. Como o cardápio é hoje vasto, temos incorporado a produção internacional com certa rapidez, dentro da mesma tônica já antiga dos estudos literários, não sendo raro encontrar a ansiedade em demonstrar atualização no plano dos conceitos acoplada a uma falta de consistência na relação com os objetos (filmes, autores, movimentos estéticos), às vezes revelando constrangedor alheamento face à tradição crítica voltada para o cinema brasileiro (ou mesmo da tradição crítica voltada para outras cinematografias quando são essas que estão em pauta). Tal inconsistência se reflete às vezes na escolha do objeto, às vezes no modo de tratá-lo. E, como resultado mais amplo e geral, se reflete na dispersão de esforços. Não digo isto pensando diretamente no fato de que, na pós-graduação, há uma tendência a se "atirar para todos os lados", como se diz, com a maioria dos professores funcionando como receptores de projetos definidos pelos alunos ingressantes, coisa que tem o seu lado ruim, mas também tem o seu lado bom (a maior liberdade, a rentabilização de paixões pessoais por determinado autor ou tema), restando analisar caso a caso. Estou pensando mais na volubilidade que nos é própria, e que leva a mudanças de rumo encorajadas pela moda, sem que se tenha explorado até o fim determinada linha de trabalho e sem dar a chance para que os problemas a serem formulados surjam do próprio percurso da reflexão na sua interação com os objetos. Em verdade, estou repondo a questão colocada pelo Roberto Schwarz no caso das letras, quando vemos a atualização teórica, ao invés de articulada à problemática em pauta numa pesquisa, se reduzir a mero mimetismo face ao contexto de produção teórica tomado como modelo. Os "becos sem saída" estão nos casos extremos desta pulverização de temas e linhas de trabalho, quando a proposta perde o senso de proporção e relevância. Os caminhos, ao contrário, se abrem quando não voltamos as costas para o solo histórico e para o lugar de onde estamos falando, e mantemos o sentido da intervenção que encontra seus interlocutores e responde a questões postas pela experiência do cinema e da cultura em nosso contexto, o que se dá não apenas a partir da eleição de objetos locais (isto não garante nada), mas fundamentalmente a partir da formação de um ponto de vista local sobre qualquer tema (por exemplo, globalização e novas tecnologias são fenômenos universais, mas vividos em cada canto do mundo de uma maneira específica). O que interessa, portanto, é a formulação de uma problemática que responde a inquietações e impasses que estão à nossa volta e que nos atingem, qualquer que seja o assunto da pesquisa.

7. Foucault, Benjamin, lingüística: aproximações e distanciamentos
Como você vê a aproximação da história do cinema com os métodos do "historiador" francês Michel Foucault? De forma direta: qual é a atualidade dos estudos de Walter Benjamin para o campo cinematográfico? Quais as implicações, nos estudos do cinema, da lingüística e da teoria da literatura (e mais recentemente, da chamada "análise do discurso"), oriundas das formulações de Mikhail Bakhtin, Austin, Oswald Ducrot, Gerard Genette, Christian Metz, Jacques Derrida?

RESPOSTA:
O que melhor resultou da influência de Foucault foram os estudos do século XIX sobre fotografia e pintura, sobre os aparelhos óticos, sobre os hábitos da sociedade e medidas disciplinares ou de controle (incluídas aí práticas policiais), trabalhos que tiveram a sua incidência na reflexão sobre cinema. Claro que penso em Jonathan Crary e sua investigação sobre o sentido da visão e as concepções do olhar, e também em John Tagg [The burden of Representation: Essays on Photographies and Histories. University of Minnesota Press, 1988], e no próprio Tom Gunning e outros teóricos e historiadores que compõem a antologia traduzida na coleção da Cosac & Naify. Antes disto, houve a presença tênue de Foucault em livros sobre os gêneros da indústria, e livros sobre a inscrição do corpo na cultura, onde se destaca alguém como Richard Dyer (que já tinha pensado bem a questão dos gêneros da indústria numa perspectiva de estudo institucional, de "formações discursivas", sem obrigatoriamente usar o vocabulário foucaultiano). Esta questão do corpo e as formas de representá-lo e inscrevê-lo em redes discursivas tem tido ressonância no Brasil, como em um número significativo de trabalhos apresentados na Socine, inclusive o que se fez em função do contato do João Luiz Vieira com Richard Dyer. A incidência maior de Foucault tem sido nas reflexões sobre a questão dos códigos e dos controles que, em geral, envolvem a esfera da mídia e as teorias de subculturas de classe, de etnia, de gênero (masculino/feminino/plural) ou de tribos urbanas, quando muitas vezes os trabalhos se afastam da dimensão estética dos problemas (não por acaso, Foucault hoje tem substituído Gramsci como referência na esfera do Cultural Studies). Mas há um outro pólo de sua influência na discussão da crise do sujeito e da noção de Autor (o tema da morte do autor), onde se dá ênfase à primazia dos sistemas, ou das formações discursivas, e à centralidade dos códigos como a língua. Estas linhas de trabalho têm interesse, mas há o risco de se reduzir todos os processos à esfera do discurso enquanto sistema (ordem, regras), dissolvendo-se a questão da passagem de uma ordem à outra, e aspectos essenciais da interação entre linguagem e mundo. Nem tudo se reduz a uma poética (ou uma retórica), ou à atenção concentrada na elucidação das regras intrínsecas dos gêneros de discurso (ou da codificação do olhar). É preciso conectar a questão das regras e dos discursos com a análise das forças que direcionam o mundo prático, os interesses de classe ou de grupos de outra ordem; enfim, a lógica da vida material e as transformações que o mundo da produção engendra. Porque articulou Foucault a outras indagações sobre o solo social e histórico, Jonathan Crary foi mais fundo nas questões e obteve a ressonância que conhecemos. De minha parte, aprendi mais com o Foucault de As palavras e as coisas, pois meu estudo da alegoria muito se valeu de suas formulações no plano das diferenças entre o mundo renascentista das semelhanças e a noção clássica de representação. Mas meu horizonte foi o de articular o que encontrei em seu livro com o quadro teórico de Walter Benjamin, no qual a questão da alegoria e suas tensões insolúveis - sua dialética de fragmentação e totalização - estão pensadas a partir de uma outra visada da história em que cada momento é pensado como drama, imperativo de violência e contradição viva, insolúvel, entre construção e destruição, civilização e barbárie, melhoria e catástrofe, desde que tudo permaneça como está no terreno da divisão social e do confronto dos interesses nacionais (centro e periferia). É esta crítica à noção de progresso e de continuidade histórica que acredito ser mais produtiva como moldura geral de um trabalho no campo das relações entre cinema e história. Muitos trabalhos incorporam mais a forma como Benjamin historiciza a percepção, a sensibilidade e as categorias estéticas, ou se concentram na sua teoria da modernidade feita a partir do estudo de Baudelaire, como acontece com os autores presentes no livro O cinema e a invenção da modernidade. No entanto, Miriam Hansen, dentro deste mesmo livro, nos lembra que é necessário cautela em tal transplante de configurações do capitalismo do século XIX para a sociedade de massas do século XX, onde enfim estamos. Há uma exploração interessante a fazer inspirada em Miriam Hansen, para além da repetição e extrapolação mecânica do que Benjamin disse sobre a urbanidade, a aura, a arte na era da reprodução. Enfim, historicizar de novo.

Acho que não precisamos voltar aqui à avaliação do legado da linguística (e da semiologia de Metz) em nosso terreno, com seu viés narratológico e mais competente na análise do cinema clássico. A crítica de seus modelos veio por vários lados: os cognitivistas (que também têm dificuldade de falar sobre algo que escapa ao narrativo e seu sistema de inferências) e deleuzianos detonaram a "enunciação", por motivos diferentes. Mas Deleuze conservou alguma coisa deste legado, notadamente quando incorpora a noção de estilo indireto livre, com toda a transformação que faz desta noção a partir das formulações de Bakhtin e Pasolini. Tal noção supõe a confluência de "vozes" e operadores textuais como o narrador, mesmo quando se descarta a psicologia e a tendência à subjetivação que a noção revela em sua tradição vinda da teoria literária. Enfim, já entrando na pergunta sobre Deleuze, a caracterização do cinema moderno teve aí um ponto forte que persiste e não pode prescindir desta tradição da teoria da narrativa para um entendimento do problema quando pensamos os últimos 40 anos de cinema.

8. Deleuze, o cinema e o olhar contemporâneo

É indiscutível a influência e a presença da obra do filósofo francês Gilles Deleuze nos estudos cinematográficos brasileiros contemporâneos. Ausente, por exemplo, da antologia A EXPERIÊNCIA, hoje os estudos cinematográficos de inspiração deleuziana adquiriram uma expressão que poderíamos dizer tão grande quanto aqueles de inspiração freudiana e lacaniana (com naturais intersecções entre ambas). Como você avalia o impacto dos textos deleuzianos especificamente cinematográficas IMAGEM-TEMPO e IMAGEM-MOVIMENTO - nos estudos cinematográficos e, por ampliação, dos conceitos mais "filosóficos" de Deleuze e como vê a sua aplicabilidade na análise fílmica, por exemplo?

RESPOSTA:
Ele ficou fora da antologia porque esta saiu no mesmo ano de A Imagem-movimento, que é de 1983, não sendo ainda referência naquele momento. Seria um item imperativo em novas antologias. O impacto realmente é enorme. Deleuze recolocou o tempo na pauta da teoria do cinema, e inseriu o cinema no campo onde se produz o pensamento do século, construindo uma teoria abrangente em seu escopo - trata-se, quando menos se esperava, de uma nova ontologia do cinema - e bem calibrada em sua estratégia de defesa do cinema moderno como o ponto decisivo onde pensamento, imagem e tempo encontram sua substância (desculpem o termo) comum. Recolocar o tempo significa descartar a base linguística, a álgebra do estruturalismo, e voltar à dinâmica, à intensidade, ao acontecimento. Avaliar tudo isto? Não é propriamente o que posso fazer, se o que se quer é uma reflexão sobre a sua filosofia e os conceitos que inventa. Mas é possível comentar algumas das implicações deste pensamento no plano da crítica, e também algumas formas deste pensamento se apropriar da crítica, notadamente aquela que, em conexão com a Nouvelle Vague, construiu o referencial dominante na concepção que temos do cinema moderno. Sim, porque se, de um lado, Deleuze re-trabalha, da forma que lhe é peculiar, os conceitos de Bergson, faz o mesmo com um enorme corpo de textos escritos sobre cinema, principalmente na França, de modo que o leitor vai reconhecendo aqui e ali os pontos de origem, nem sempre nomeados, e também as diferenças que se introduzem quando o filósofo inscreve idéias e noções em seu estilo de pensar. O essencial é que seu pensamento legitima o moderno, chega a compor um movimento da história do cinema em que os avanços da prática se conectam a uma definição dos conceitos chave: imagem-movimento, imagem-tempo, imagem-cristal. Com isto, o leitor vê confirmada uma forma particular, europeizante e tipicamente "pós-guerra", de entender a história do cinema. Cabe então perguntar: noções como imagem-movimento e imagem-tempo não estariam limitadas por recortes cronológicos à revelia do que o próprio Deleuze pensa sobre a história? Por que é necessário fazer uma leitura do cinema mudo, inclusive das experiências de vanguarda, no interior do que é subsumido à imagem-movimento, como se fosse necessária sua precedência na história do cinema, face à imagem-tempo, que viria depois? O que significa este resíduo cronológico na exposição dos conceitos do filósofo? Não seria redutor este diagnóstico da "liquidez" do impressionismo francês, e não seria limitada sua análise das figurações do cinema de Eisenstein inscritas no campo da imagem-movimento? O que significa este jogo de inversões especulares que faz com que um filósofo, cujas afinidades eletivas conduzem a Nietzsche, privilegie uma galeria de autores muito similar à galeria celebrada pela crítica francesa cristã do pós-guerra e seus derivados?

Algumas destas questões já foram postas por quem se debruçou mais decisivamente sobre os textos de Deleuze, como é o caso de André Parente que, em Narrativa e modernidade [Papirus, 2000] questiona a forma como o filósofo francês (assim como outros autores) concebe a oposição entre o narrativo e não-narrativo no âmbito da imagem. Se a questão é Deleuze, outro percurso de análise do moderno e do pós-moderno que o toma como interlocução central está no livro de Peter Pál Pelbart, A vertigem por um fio: políticas da subjetividade contemporânea [Iluminuras, 2000]. Cito os casos em que há densidade. Na discussão de teoria, em particular quando a pergunta é pela repercussão de um pensamento consagrado, é preciso distinguir quem se insere na problemática deleuziana por opção, ou seja, quem conhece a história e a teoria do cinema, e faz sua escolha a partir de um repertório amplo, daqueles que simplesmente aderem ao que lhes parece "distintivo", no sentido de Pierre Bourdieu. Num período recente, o que me parece pouco produtivo são os lances de filosofia kitsch, a roupagem chique do pensamento trivial, muito próprios a quem escreve como se a reflexão sobre o cinema tivesse começado ontem. Não é raro ver pessoal desavisado cogitar, no que pensam ser exploratório e "de ponta", em supostos caminhos da crítica que, em verdade, já foram percorridos em análises concretas, seja do cinema moderno brasileiro, seja das formas de distinção entre o cinema clássico e o moderno, seja de um autor já arquiinterpretado. Do ponto de vista da crítica, há que se ter um senso de proporção, que muito depende de uma formação do gosto que se articula a conhecimentos históricos, para evitar a aplicação de um repertório conceitual que está em descompasso com a problemática presente no filme que se escolhe examinar. Lembro a piada do pessoal de Letras ao citar a irrelevância de teses do tipo: "A instância da letra no inconsciente, Lacan e as rimas no discurso poético de J.G. de Araújo Jorge". Às vezes, o filme é de pouca envergadura e não adianta forçar o debate estético com a aplicação mecânica de conceitos inventados para pensar questões muito mais complexas do que o objeto diante dos olhos. Isto se torna mais caricato quando o vôo filosofante é forma de elidir o solo sócio-histórico da obra (porque este nem sempre se conhece) e agir como se fossem menores as perguntas sobre a articulação de uma forma estética com o contexto sócio-político de onde emerge.

Indo em direção contrária, e para falar de um caso em que a envergadura das obras se ajusta à complexidade da discussão conceitual, vale a pena examinar a excelente tese de Francisco (Kaq) Saraiva, defendida na UNB, cuja análise de Limite, de Mário Peixoto, demonstra a erudição necessária para um comentário que retoma o problema da distinção, no concreto, entre imagem-movimento e imagem-tempo, analisando a temporalidade inscrita nas imagens do filme, questionando, assim, a suposta ausência da imagem-tempo na primeira vanguarda e seus interlocutores. E também o livro de Cláudio da Costa, Cinema Brasileiro (anos 60-70): dissimetria, oscilação e simulacro (Rio de Janeiro, & Letras, 2000), quando a mobilização dos conceitos é pertinente ao universo do cinema moderno que está em pauta, trazendo nova perspectiva de análise sem descuidar do diálogo com a fortuna crítica já construída em torno de Glauber e Bressane, por exemplo.

9. A Teoria Cognitivista do Cinema
Contando com os seus reparos devidos, poderíamos dizer que a década de 1990 (ou talvez a periodização devesse recuar a partir da segunda metade da década de 1980), vê aflorar uma geração de teóricos, historiadores, críticos e analistas que de certa forma deslocaram o foco central dos estudos cinematográficos da França dos estruturalistas lingüísticos para os Estados Unidos e a Inglaterra dos chamados cognitivistas (David Bordwell, Janet Staiger, Noel Carroll, Richard Arlen, Carl Plantinga etc.). Em que pese algumas obras que manifestam um certo contato com estes textos (praticamente inéditos em português), como você avalia a assimilação deste paradigma teórico e analítico em nosso meio? Nós faríamos a provocação de propor a existência de uma certa resistência a este corpo teórico pelos pesquisadores e teóricos locais, sem avançarmos em suas possíveis causas.

RESPOSTA
O cognitivismo na teoria do cinema surge no bojo de uma deliberada campanha contra a psicanálise e o que estava implicado na teoria do "dispositivo" de Baudry: passividade do espectador, regressão narcisista, vulnerabilidade à manipulação e associações "irracionais". Enfim, tudo o que desestabiliza o Sujeito soberano e as operações autônomas da Razão.

Foi violenta a polêmica, em torno de 1986, na revista October, entre Noel Carroll e Stephen Heath, a partir de um ataque de Noel ao esquema teórico da revista Screen, de tipo lacaniano. Em sua introdução ao Narration in the Fiction Film, Bordwell faz o balanço crítico dessas questões e propõe uma teoria da narrativa menos apoiada em modelos linguísticos e, em especial, na idéia de enunciação, chegando a seu modelo interativo entre filme e espectador, este último dispensando as hipóteses lacanianas sobre o sujeito e atuando na linha da racionalidade do senso comum da espécie: recolhe dados pelo equipamento sensível, formula hipóteses, as verifica e opera segundo um jogo de inferências de tipo binário, como um computador ao processar os dados. Claro que Bordwell não usa assim tal associação, sou eu (e Bill Nichols que, numa crítica à teoria da narrativa de Bordwell, conclui com esta ironia de que tudo funciona às mil maravilhas, desde que a luz saída da tela encontre um computador na platéia). Há um quê de caricatura nisto, mas foi o próprio Noel Carroll quem fez a associação numa conversa comigo lá pelos idos de 1977, quando me explicava a sua teoria da montagem (eu tenho um xerox do texto). Explicou, descreveu como o espectador receberia cada novo plano e formularia as hipóteses, verificaria, alteraria o pressuposto e voltaria ao mesmo procedimento até chegar à resposta satisfatória. Depois de certo tempo, se deu conta e me perguntou: isto soa como um computador? Eu disse sim. Ele sorriu.

Aceitando a provocação de vocês, posso dizer que sou um dos que resistem a este corpo teórico quando assumido em seu lado "contra a interpretação", e estou convencido de que o ensaio sobre cinema no Brasil tem, em curto prazo, caminhos mais interessantes a seguir, fora desta assepsia acadêmica à Bordwell. Mas partilho com eles o zelo pela descrição. E há jovens seguindo esta trilha e fazendo a crítica da tradição francesa de teoria do cinema, coisa que se vê na SOCINE que sempre nos traz uma amostra das preocupações dos vários grupos. Em verdade, sem perder de todo esta associação feita acima com o computador, a coisa é, sem dúvida, mais complicada e tem seu terreno de validade, desde que não radicalizemos esta eliminação da esfera do desejo, do inconsciente, da operação de esquemas ideológicos, enfim de tudo o que sabemos sobre a prática de leitura das imagens que não se reduz a estes algoritmos em estado puro, pois há o "ser em situação" e suas linhas privilegiadas de associações significantes que acredito pouco tem a ver com o que eles chamam de "inferências". Isto fica nítido no livro Blurred Boundaries: Questions of Meaning in Contemporary Culture, onde Bill Nichols tem um artigo extraordinário sobre o caso das imagens em vídeo do espancamento de Rodney King e sobre as leituras feitas por defesa e acusação no julgamento dos policiais envolvidos.

Em defesa dos cognitivistas, temos um bom exemplo do próprio Noel Carroll - um intelectual nitidamente de esquerda no período novayorquino (como Arthur Danto, seu maior inspirador e Annette Michelson, sua maior amiga e ex-orientadora) - que nos oferece um movimento interessante nesta interação entre imagens e cadeias de pensamento lógico em sua análise da `seqüência dos deuses' do filme Outubro, do Eisenstein (ver revista Artforum nº 11, 1973). Sua forma de evidenciar a possibilidade de ver na sequência uma demonstração de tipo matemático (a dita demonstração por absurdo) deixa claro o quanto aí não há preocupação em postular uma operação mental passível de ocorrer num espectador qualquer (como forma de universalizar uma teoria da narrativa pautada pelo dinamismo da percepção e das inferências próprias à espécie). O que há é o trabalho de análise do crítico e sua particular capacidade de interpretação da seqüência. O problema mais geral é que Bordwell, por exemplo, é muito preciso na descrição (o que é ótimo), mas sua assepsia no plano hermenêutico o impede de mobilizar contextos moduladores de interpretações que confiram rentabilidade crítica a suas descrições. Vejam o livro sobre Dreyer, ou o capítulo sobre Godard no Narration. Diz muito, num plano, e diz muito pouco em outro. Sim, sabemos que ele é mestre na crítica das formas do "making meaning" presentes na crítica (especialmente a francesa), o que ele faz de uma "posição transcendental", aquém ou além da problemática em que se empenham os críticos comentados (a alusão a Kant não é casual, mas é preciso não confundir a crítica da razão com o zelo de um inspetor geral muitas vezes amesquinhado). Não surpreende que seu papel maior seja o desse constante mapeamento de questões, com tendência a tais operações de esvaziamento, e este excelente trabalho de elaboração de "introduções", mapeamentos de obras, autores, estilos, tudo o que recomendo a meus alunos que leiam sem esquecer o lado redutor de suas análises e a estreiteza de horizontes de sua critica, porque sua concepção do processo cultural é esquemática, classificatória, excessivamente voltada para questões vocabulares que muitas vezes formatam um falso problema.

10. Cinema e Psicanálise, hoje.
Quais são as implicações para a teoria cinematográfica da psicanálise contemporânea (digamos que "pós-lacaniana")? Em que medida o "retorno a Lacan" promovido por Slavoj Zizek atualiza a psicanálise no exame da produção de sentido na experiência do cinema? Até que ponto é correto recolocar a questão do olhar (nostalgia, pornografia e montagem) para tentar explicar os "impasses da dessublimação repressiva" (A EXPERIÊNCIA DO CINEMA) e o contínuo interesse pelo cinema clássico narrativo?

RESPOSTA:
Há pouco de novo sob o sol da psicanálise do cinema. Mas a área continua sempre presente, principalmente nos seus aspectos que já viraram senso comum da crítica. O impacto de Deleuze eclipsou a teoria do "dispositivo" no seu próprio foco irradiador. As revistas francesas continuam, no entanto, a mobilizar Lacan, notadamente Vertigo com seus números temáticos que quase sempre envolvem assuntos afinados ao quadro conceitual da psicanálise. E, na Universidade de Paris III, Muriel Gagnebin, ligada a Jean-Louis Leutrat, lidera um grupo voltado para a análise psicanalítica da imagem que faz uma ponte interessante com estudos literários. Para nós, no Brasil, a história é diferente pois não tivemos a presença forte da teoria do cinema no eixo Lacan-Althusser; ela foi comentada, explicada, mas pouco assumida, ressalvada a premissa do "dispositivo" na crítica ao cinema clássico (vide meu próprio livro). Há uma nova antologia, onde há psicanálise sem necessariamente haver lacanismo, que merece atenção: Psicanálise, cinema e estéticas da subjetivação, organizado por Giovanna Bartucci (Imago, 2000). Voltando à Europa, vocês citaram o melhor exemplo, pois Slavoj Zizek é muito inteligente e faz exatamente uma psicanálise que se articula com uma indagação sócio-política, trabalhando muito bem as implicações do que tensiona a contradição entre a noção do cidadão (indivíduo abstrato, genérico), sujeito de direitos, e os sujeitos concretos de desejos, em conflito com os imperativos da cidadania. Ver seu Looking Awry: an Introduction to Popular Culture through Jacques Lacan (MIT Press, 1991). Ele tem muita ironia e pratica um ensaísmo brilhante que tem como premissa uma psicologia social complicada, sempre centrada na política, como Marcuse a quem vocês aludem no final da pergunta. Não entendi bem o sentido específico desta tríade "nostalgia, pornografia, montagem", mas o horizonte da pergunta é a questão da potência explicativa das categorias psicanalíticas no plano da cultura. Sem me atribuir competência específica para entrar fundo na questão, acho que continua sendo uma boa aposta esta mobilização das matrizes da formação do sujeito na infância para equacionar determinadas demandas coletivas como esta pela narrativa nos termos clássicos. E lembremos que fetiche é também uma noção chave dentro deste terreno (aqui Laura Mulvey, Fetiche and Curiosity, tem muito a dizer).
11. Dogmas, dissidências, experimental, vanguarda
Conhecemos bem (desde a apresentação a A EXPERIÊNCIA DO CINEMA) do seu vivo interesse pelos "outros" cinemas, pela experiência do filme de vanguarda, do underground americano, do cinema de contestação ao modelo dominante norte-americano. Queríamos que você avaliasse a situação teórica da defesa crítica e política em prol de um "cinema de invenção" (Jairo Ferreira), incluindo na resposta uma visão da reemergência do "cinema-manifesto" (Dogma 95), fenômeno que nos remonta às décadas de 1920 e 1960.

RESPOSTA:
A defesa do cinema de invenção perdeu uma dimensão decisiva de seu empenho: a da utopia. No momento do alto modernismo cinematográfico, digamos nos anos 60-70, qualquer proposta de um cinema alternativo trazia um horizonte de mudanças que eram, ao mesmo tempo, do cinema e da sociedade (e não era preciso vincular experimentos ou vanguardas ao socialismo), pois fazer oposição e buscar o diferente era criar um novo espaço institucional de discussão do cinema (como o fez o underground, longe do mercado e da indústria cultural). Ou era fazer a crítica política apoiada num senso de que a própria lógica engendrada na fatura (modo de produção e linguagem) dos filmes era já uma metáfora de uma outra forma de viver e trabalhar, ou seja, a idéia do alternativo trazia um quê de antecipatório, próprio a quem sente o tempo a favor, apesar dos entraves. Agora, o senso maior é de resistência, de quem sente o tempo contra, e leva o barco como uma assembléia dos sobreviventes, dos que ainda não aderiram ao consenso e à festa da indústria cultural. O próprio Dogma, notadamente para nós, brasileiros, que vivemos já a experiência da estética inventada na escassez, tem esta conotação, mesmo que sejamos simpáticos ao grupo e gostemos do que faz Lars Von Trier, por exemplo. O processo de domesticação da transgressão se acelerou, trazendo a cada exemplo de cinema de invenção um destino de rápida classicização: ganha-se respeito, entra-se para o cânon, o que nos incomoda quando consideramos a intensidade com que se vivem determinadas descobertas logo reduzidas a mais um item na prateleira. Não há aquela excitação "sustentável" de esforço teórico novo e prática nova, com aquelas "great expectations" juvenis. O que não significa que não tenhamos todos um elenco razoável de boas experiências e ótimos filmes a listar a cada ano. Falta o clima, a configuração histórica mais ampla capaz de catalisar a invenção que ressoa e "faz época", algo que poderia ser afinado aos 1920 ou 1960.

12. Documentário

Na introdução do Discurso Cinematográfico, você recorta o objeto de análise no cinema ficcional. E faz a seguinte ressalva: "Aqui é assumido que o cinema, como discurso composto de imagens e sons é, a rigor, sempre ficcional, em qualquer de suas modalidades; sempre um fato de linguagem, um discurso produzido e controlado, de diferentes formas, por uma fonte produtora." Algumas das recentes teorias sobre o documentário - como a formulada por Bill Nichols, por exemplo - defendem uma certa especificidade para o campo do documentário, baseadas no princípio de que as narrativas audiovisuais são socialmente indexadas como ficção ou documentário, a partir de determinações diversas: narrativas e extranarrativas, o que implica em diferentes condições de espectatorialidade e portanto de diálogo entre público e obra. Qual é sua reflexão nesse sentido? Será realmente necessário pensar uma especificidade para o campo do documentário? E em que bases analíticas tal reflexão deve ser feita?

RESPOSTA:
O Bill Nichols tem razão. Assim como o Roger Odin quando desloca a questão com suas noções de leitura ficcionalizante e leitura documentarizante. O problema da distinção entre documentário e ficção é mais complexo. E eu já havia reconhecido isto na segunda edição do livro, quando citei a Zulmira Ribeiro Tavares que havia me advertido para a simplificação contida nesta frase que vocês citam. Há um jogo de palavras que faz confundir "representação" (ou mesmo "discurso") com "ficção". O que ela argumentava era o seguinte: a ficção é um processo criativo, um inventar, imaginar. Não é apenas um realismo equivocado que não se reconhece como tal, ou mera vontade de enganar, mentira com aparência de verdade. Estamos habituados a desqualificar um discurso que deseja o efeito de verdade dizendo que é "ficção", o que na época levava a esta equação: cinema=linguagem=não real=ficção. Não é absurdo tal nivelamento, mas ele toma "ficção" num sentido bem redutor e puramente negativo. Estão certos os que assumem ficção e documentário como sinalizações de gêneros de discurso (ou de expectância) diferentes. Por mais que seja palpável a zona cinzenta em que estaria a fronteira, vale a pena explorar caminhos teóricos que a supõem e tentam tornar mais nítido o espaço em que ela se encontra. As bases analíticas para tanto não poderão vir de uma postura estritamente "estrutural", ou seja, supondo que pela exclusiva observação da imagem, em radical imanência, podemos resolver o problema. É preciso retirar o mundo do parêntese que a fenomenologia (solo da postura estrutural moderna) o colocou e voltar a assumir com maior ênfase a conexão entre produto (imagem e som na tela) e processo. E processo, aqui, entendido em duas pontas: na gênese (a produção, os métodos de trabalho) e na função social (enfim, a recepção, as atitudes de recepção que dependem do contexto e da moldura, e não apenas das qualidades intrínsecas à obra). Enfim, é isto que os teóricos estão fazendo. Para resumir, a categoria que deve ser questionada, neste caso, é a da representação, pelo menos em seu sentido clássico. O que um documentário engendra é uma relação entre câmera e sujeitos (as "personagens" do Coutinho) capaz de produzir um acontecimento singular (que tem algo de teatro como toda ação feita para o olhar, mas não o é em sentido estrito); há algo difícil de nomear, que o filme dá a ver e que exige de nós a construção das noções capazes de dar conta do ocorrido. Certamente ficção não é o termo apropriado.

Toda imagem tem o seu sentido alterado pela moldura, pelo contexto, pela legenda, formas variadas de montagem, mas é preciso reconhecer que há algo mais na franja entre a força intrínseca do registro e o poder da montagem. Algo que tem a ver com o que Balázs denominou a fisionomia das coisas, a face do homem, noções que Eisenstein retomou lembrando que, embora a noção de fisionomia tenha perdido a dimensão científica que tinha no século XVIII, algo nomeado por ela, que se liga ao senso de pregnância e expressividade da forma, age decisivamente sobre nós pela imagem de um rosto, pelo grão de uma voz, pelo pitoresco da paisagem, pela contundência de um fato. Há algo mais do que montagem e desconstrução em Vertov, e tem razão Kracauer quando se contorce para explicar a questão da empatia (no sentido de relação intersubjetiva) diante da imagem, e se esforça em elogiar um certo realismo (estranho realismo, como diria Adorno) como vocação do cinema, em total paralelo e como uma espécie de versão laica do evangelho de Bazin. Pensar o documentário, para além das tipologias, é repor estas questões que passam pelo encontro entre olhar e objeto; pelo que há de drama, hesitação, contenção e exibicionismo, pelo peculiar teatro, enfim, que ocorre no aqui-agora da filmagem.

13. O Cinema Brasileiro Moderno
Publicado originalmente em 1995, a nova versão de "O Cinema Brasileiro Moderno" nos dá um quadro sintético e nem por isto menos rigoroso da trajetória do cinema brasileiro desde os anos 1960. Ao abordar a década de 1990, você se empenha em atualizar algumas premissas do diagnóstico sessentista de Paulo Emílio, sobretudo a do "cinema subdesenvolvido", hipótese que, segundo você escreve textualmente "não se pode vislumbrar o momento em que podemos descartá-la". Como você avalia, no bojo destas formulações, o notável e inegável avanço tecnológico do cinema brasileiro, que está sofrendo presentemente uma "pequena" revolução que é a adoção da tecnologia digital que agiliza e barateia o antes insuportavelmente caro processo de produção cinematográfica? Este acesso às tecnologias de ponta não significará, em primeiro lugar, um aumento significativo na produção brasileira (ainda que o problema do mercado pareça insolúvel), gerando uma situação peculiar, em que, sem mercado e com público limitado (baixa demanda) a produção brasileira (de ficção, documentária, experimental) tende a crescer veriginosamente, pela simplificação e desinflação da produção cinematográfica?

RESPOSTA:
É, sem dúvida, inegável a facilitação que as tecnologias digitais produz, permitindo viabilizar filmes localizados numa gama variada de opções estéticas. Enfim, há aí a combinação de potencial criador, liberdade de linguagem e baixo custo. Algo como a tecnologia atual oferecendo uma experiência que tem o efeito viabilizador da estética da fome, mas dentro de outro protocolo estético que teria a vantagem de ser mais elástico no ajuste a diferentes linguagens e estilos de autor. OK. Há aí uma revolução na produção e um salto quantitativo decisivo, no entanto travado em seu alcance pelo que sabemos: o poder na mídia hoje está concentrado nos canais de distribuição e circulação dos produtos, não tanto no fazer. Para completar seria necessário fazer a revolução na distribuição, o que exige mais do que Leis de Incentivo e muito cacife político, lances que, na ordem de coisas atual, são verdadeira miragem. Se vocês têm razão quanto à promessa de crescimento da produção, resta o fantasma que assombra o cinema brasileiro: a questão da "legitimidade" perante a "opinião pública" (por mais vago e clichê que isto pareça). Com baixo ou alto orçamento, com imagem digital ou não, a produção se apóia na Lei, e o mercado não devolve o capital, mesmo que modesto. É o plano da política do Estado, onde entram ainda questões nacionais como identidade, importância estratégica do nível simbólico, e o plano dos interesses da corporação que sustentam ideologicamente tal aparato legislativo indispensável, o que pressiona fortemente os cineastas a buscar os milhões de espectadores. Como justificar a renúncia fiscal e dizer que o cinema brasileiro interessa a todos se não há público, mesmo que expliquemos as razões históricas disto? A estética, os festivais, a crítica, os cinéfilos, tudo isto ajuda, e bastante, porque, não fora a adesão destes setores a um senso de que é imperativa a existência do cinema brasileiro, talvez o modesto aparato legal não estaria aí. Mas a crítica, por si, não leva o grande público ao cinema. E o processo de afirmação do cinema como instituição forte na esfera pública da mídia fica travado, levando a esta idéia de que não dá para descartar o diagnóstico do subdesenvolvimento econômico, ou seja, um cinema cuja infraestrutura e presença na sociedade estão aquém do que deveria.

Na dinâmica que envolve autores, obras e público, este último é o pólo frágil, esgarçado, que impede a consolidação do sistema do cinema brasileiro na acepção de Antonio Candido (formação da literatura) que Paulo Emílio assume como horizonte não nomeado e que meu texto comenta explicitamente. Claro que há aí possíveis mudanças de escala que permitiriam propor a idéia de um cinema "formado" no plano de sua trajetória estética, cinema que encontraria seu momento decisivo no cinema moderno (a produção da retomada recente confirmaria tal idéia de que o cinema brasileiro "faz sistema", neste sentido mais restrito de autores, obras e críticos). Neste caso, estaríamos descartando a pedra de toque trazida pelo que chamei de esfera pública da mídia, e estaríamos dizendo que, na era da televisão, o cinema virou coisa para poucos. Mas temos de reconhecer que, de fato, não é isto o que ocorre em outros países como Estados Unidos e França, ou Índia e os asiáticos emergentes. Ou seja, o cinema tem um potencial de disseminação social (fundamental para sua relevância na formação do imaginário hegemônico) que aqui não chegou a termo, embora acumulemos conquistas estéticas e uma diversidade de experiências que compreende o curta-metragem, o longa narrativo-dramático, o documentário, o filme experimental. Tomando as idéias de José Paulo Paes para a literatura, o que nos falta é a produção média, o cinema de entretenimento forte. Será que a tecnologia digital vai permitir criar tal segmento e dar-lhe força para furar os bloqueios?
A questão aqui é que pensar numa cinematografia nacional não permite que você se restrinja a uma reflexão e aos problemas do "cinema de arte" que a mim, por exemplo, satisfaz e "faz sistema" em diálogo com a cultura dos festivais e das mostras, das universidades e das cinematecas. Neste sentido, contribuir para uma resposta positiva à pergunta feita acima, é retomar a postura de Glauber Rocha em sua aparição no filme Vento do Leste (1969), de Godard, quando polemizou com o diretor francês e afirmou que o caminho do cinema do terceiro mundo não era propriamente a desconstrução como palavra de ordem geral, mas a construção de cinematografias nacionais que exigiriam outras opções de linguagem, por mais dolorido que isto fosse. Ele foi aí pragmático e verbalizou o que seus filmes nunca seguiram, pois sempre reafirmaram o experimental, com leves acenos de comunicação de massa em O dragão da maldade. Foi com este dilema - a distância entre o que a gente pensa, em tese, sobre o que deveria ser feito coletivamente, e o que a gente investe criticamente em debates que, para nós, são indispensáveis na defesa da qualidade - que terminei, lá atrás, o livro com que começamos esta conversa, O discurso cinematográfico. O tempo passou, mas certos impasses se reiteram.
Nota dos entrevistadores
Ismail Xavier se refere ao projeto de indexação da revista CINEARTE, feito por Lécio Augusto Ramos, Hernani Heffner, Lúcia Maria Pereira Bravo e Osmar José Guimarães da Silva para a extinta Embrafilme (1984).

* Alunos do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da UFF.

Nenhum comentário: