Da relação mágica com o mundo ao mundo mágico do cinema
Dedico essa reflexão ao Kinocélula, e ao que venho aprendendo com os alunos desde que começamos esses encontros na ESPM. Porque além de fazer cinema, uma das melhores escolas de cinema é dar aulas de cinema. Desculpe a redundância do termo, mas é assim. Aprende-se muito passando adiante o que se sabe.
De tantos aprendizados, reflito agora sobre um: o fazer do próprio artista. Aqui não falo do profissional, do técnico, do funcionário. Mas do artista.
Tudo parte, primeiro, de uma relação mágica com a arte. Ninguém que se aventura nesse campo sabe definir racionalmente porque o faz, simplesmente se sente movido por uma força da natureza, às vezes até contrária à razão dos tempos, à praticidade da vida e às crenças vigentes, especialmente as que prezam pela segurança. Não, a arte não é um lugar seguro. Pelo contrário, o lugar para onde vamos é assustador e solitário à primeira vista, e somente se tivermos a firmeza interna de continuar é que encontramos a matéria-prima da concepção genuína. Todo o resto é cópia, e por mais bem realizada que seja, não faz tanta diferença no passar do tempo.
Mas voltemos à relação mágica com a arte. A princípio, quem se aventura primeiramente foi raptado. Em algum momento, seja por um filme, música, uma frase, foi abduzido a esse mundo e voltou diferente. No meu caso, o simples ruído do projetor na sala de cinema já era o portal para alguma felicidade: algo me seria contado, uma história, eu seria magicamente transportada para algum universo. Durante aquele tempo do filme, eu não mais seria eu, mas alguém na tela, em outro lugar, em outro tempo. E essa suspensão dionisíaca me faria sonhar acordada e me levaria também a outros lugares de mim.
Eu poderia continuar assim. Uma amante.
Isso faria de mim uma cinéfila, não uma cineasta.
Mas por alguma razão inexplicável, algo me chamou para ser uma realizadora. E, apesar de toda a mística em torno disso, todo o prestígio criado pelo meio, esse não é um lugar confortável. Porque, para começar, tive que abrir mão da minha relação mágica com o próprio cinema, desvendar o mundo atrás das cortinas, atrás das câmeras. Perceber que as histórias não nascem prontas, que os filmes não se fazem como por encanto, mas às custas de muito suor, trabalho, frustrações, fracassos e, sobretudo, medos. Especialmente o medo de não ser compreendida.
Assim, para me forjar cineasta, tive que abandonar o éden da poltrona do cinema. Tive que me submeter aos ácidos nessa alquimia da transposição de amante a artista. Em vários momentos, precisei acreditar quando ninguém acreditava, nem mesmo uma parte de mim que buscava o caminho mais fácil. Em outros momentos, tive que, humildemente, reconhecer que ainda não havia chegado onde queria, me desapegar do feito e recomeçar. Em vários momentos desisti, e graças a essa correnteza inexplicável que acabei chamando destino, fui jogada de volta ao furioso rio de minhas criações.
Até que, nesse turbilhão, colhi alguns frutos. E ao contrário do que se pensa, eles não são os aplausos. São o silêncio de quem não consegue achar palavras rápidas para definir o que viu, ou melhor, sentiu, ao assistir o resultado de tanta batalha. Porque aplausos rápidos e palavras rápidas vêm de lugares confortáveis, mas quando o espectador é também raptado, volta como que entorpecido.
Nada disso se faz facilmente. Como por encanto. A mágica está na tela, mas realizá-la nos coloca em situação de perder a relação mágica com o mundo. E não estou falando da relação lúdica com o mundo, mas de uma falsa crença de que as coisas serão feitas por si mesmas - um resquício do mundo infantil que ainda carregamos. Olho com esse impulso! É ele quem nos leva aos lugares fáceis, quem nos faz desistir na primeira dificuldade, e, principalmente, quem nos faz distorcer um primeiro impulso inovador, em geral ainda estranho, pelo receio de não ser aceito.
Sinceramente, acho melhor errar feio buscando algo inovador do que acertar fazendo o mesmo com roupagens novas. Porque para cada “acerto”, há muitos fracassos. E só quando perdemos o medo do fracasso, superamos esse medo infantil de não agradar, é que ganhamos a firmeza e a maturidade que um artista verdadeiro necessita.
Por isso, sempre me pergunto se quero continuar nesse caminho. Dá trabalho entrar na noite de si. Dá trabalho lidar com esses medos, angústias. Dá trabalho resistir às crenças de sucesso, dá trabalho recomeçar sempre. Às vezes, em trégua, volto à sala de cinema e me permito mergulhar na magia. E a cada novo rapto, saio cada vez mais inspirada em novamente me meter em novas enrascadas, em um novo projeto.
Muitas vezes me perco, é verdade. Mas em preciosos momentos, percebo um encontro. Esse lugar novo que encontrei em mim reverbera em um lugar novo dentro do outro. Nesse momento, a mágica não é ilusória, é real. Vai além do entorpecimento da sala escura, é um momento que transforma.
É graças a esses momentos que eu continuo. E posso encarar mil fracassos, por mais duros que sejam, para sentir novamente esses instantes de encontro.
por Claudia Pucci
De tantos aprendizados, reflito agora sobre um: o fazer do próprio artista. Aqui não falo do profissional, do técnico, do funcionário. Mas do artista.
Tudo parte, primeiro, de uma relação mágica com a arte. Ninguém que se aventura nesse campo sabe definir racionalmente porque o faz, simplesmente se sente movido por uma força da natureza, às vezes até contrária à razão dos tempos, à praticidade da vida e às crenças vigentes, especialmente as que prezam pela segurança. Não, a arte não é um lugar seguro. Pelo contrário, o lugar para onde vamos é assustador e solitário à primeira vista, e somente se tivermos a firmeza interna de continuar é que encontramos a matéria-prima da concepção genuína. Todo o resto é cópia, e por mais bem realizada que seja, não faz tanta diferença no passar do tempo.
Mas voltemos à relação mágica com a arte. A princípio, quem se aventura primeiramente foi raptado. Em algum momento, seja por um filme, música, uma frase, foi abduzido a esse mundo e voltou diferente. No meu caso, o simples ruído do projetor na sala de cinema já era o portal para alguma felicidade: algo me seria contado, uma história, eu seria magicamente transportada para algum universo. Durante aquele tempo do filme, eu não mais seria eu, mas alguém na tela, em outro lugar, em outro tempo. E essa suspensão dionisíaca me faria sonhar acordada e me levaria também a outros lugares de mim.
Eu poderia continuar assim. Uma amante.
Isso faria de mim uma cinéfila, não uma cineasta.
Mas por alguma razão inexplicável, algo me chamou para ser uma realizadora. E, apesar de toda a mística em torno disso, todo o prestígio criado pelo meio, esse não é um lugar confortável. Porque, para começar, tive que abrir mão da minha relação mágica com o próprio cinema, desvendar o mundo atrás das cortinas, atrás das câmeras. Perceber que as histórias não nascem prontas, que os filmes não se fazem como por encanto, mas às custas de muito suor, trabalho, frustrações, fracassos e, sobretudo, medos. Especialmente o medo de não ser compreendida.
Assim, para me forjar cineasta, tive que abandonar o éden da poltrona do cinema. Tive que me submeter aos ácidos nessa alquimia da transposição de amante a artista. Em vários momentos, precisei acreditar quando ninguém acreditava, nem mesmo uma parte de mim que buscava o caminho mais fácil. Em outros momentos, tive que, humildemente, reconhecer que ainda não havia chegado onde queria, me desapegar do feito e recomeçar. Em vários momentos desisti, e graças a essa correnteza inexplicável que acabei chamando destino, fui jogada de volta ao furioso rio de minhas criações.
Até que, nesse turbilhão, colhi alguns frutos. E ao contrário do que se pensa, eles não são os aplausos. São o silêncio de quem não consegue achar palavras rápidas para definir o que viu, ou melhor, sentiu, ao assistir o resultado de tanta batalha. Porque aplausos rápidos e palavras rápidas vêm de lugares confortáveis, mas quando o espectador é também raptado, volta como que entorpecido.
Nada disso se faz facilmente. Como por encanto. A mágica está na tela, mas realizá-la nos coloca em situação de perder a relação mágica com o mundo. E não estou falando da relação lúdica com o mundo, mas de uma falsa crença de que as coisas serão feitas por si mesmas - um resquício do mundo infantil que ainda carregamos. Olho com esse impulso! É ele quem nos leva aos lugares fáceis, quem nos faz desistir na primeira dificuldade, e, principalmente, quem nos faz distorcer um primeiro impulso inovador, em geral ainda estranho, pelo receio de não ser aceito.
Sinceramente, acho melhor errar feio buscando algo inovador do que acertar fazendo o mesmo com roupagens novas. Porque para cada “acerto”, há muitos fracassos. E só quando perdemos o medo do fracasso, superamos esse medo infantil de não agradar, é que ganhamos a firmeza e a maturidade que um artista verdadeiro necessita.
Por isso, sempre me pergunto se quero continuar nesse caminho. Dá trabalho entrar na noite de si. Dá trabalho lidar com esses medos, angústias. Dá trabalho resistir às crenças de sucesso, dá trabalho recomeçar sempre. Às vezes, em trégua, volto à sala de cinema e me permito mergulhar na magia. E a cada novo rapto, saio cada vez mais inspirada em novamente me meter em novas enrascadas, em um novo projeto.
Muitas vezes me perco, é verdade. Mas em preciosos momentos, percebo um encontro. Esse lugar novo que encontrei em mim reverbera em um lugar novo dentro do outro. Nesse momento, a mágica não é ilusória, é real. Vai além do entorpecimento da sala escura, é um momento que transforma.
É graças a esses momentos que eu continuo. E posso encarar mil fracassos, por mais duros que sejam, para sentir novamente esses instantes de encontro.
por Claudia Pucci
sábado, 25 de outubro de 2008
quinta-feira, 8 de maio de 2008
terceira kino turma + Andaluza
hoje terminamos nosso encontro no Andaluza
muitas discussões interessantes e impossíveis de se transcrever. vida inteligente e sensível pulsando.
não sei quanto a vocês, mas saí vitalizada.
essa turma promete.
tomara que se faça a passagem. tomara que transcenda os encontros de quinta. tomara que seja porto, referência, para algo maior.
a gente sempre espera. talvez esse dia chegue.
a tempo: é possível viver de arte. aliás, é possível viver de qualquer coisa, menos de um coração de plástico.
só desejo a vocês coragem. e para mim também, porque o barco é o mesmo para todos.
com amor. Claudia
muitas discussões interessantes e impossíveis de se transcrever. vida inteligente e sensível pulsando.
não sei quanto a vocês, mas saí vitalizada.
essa turma promete.
tomara que se faça a passagem. tomara que transcenda os encontros de quinta. tomara que seja porto, referência, para algo maior.
a gente sempre espera. talvez esse dia chegue.
a tempo: é possível viver de arte. aliás, é possível viver de qualquer coisa, menos de um coração de plástico.
só desejo a vocês coragem. e para mim também, porque o barco é o mesmo para todos.
com amor. Claudia
my blueberry nights
quinta-feira, 10 de abril de 2008
entrevista com Eduardo Coutinho
Eduardo Coutinho
O diretor de documentários fala dos rumos do cinema brasileiro e de como consegue a cumplicidade de seus personagens
Eduardo Coutinho é um homem pouco afeito a conceitos. Seu trabalho é concreto. Por trás da idéia de seus filmes raramente se esconde algum código indecifrável aos "leigos". Até mesmo a montagem de seus trabalhos tende a ser o mais linear possível, e por opção. "Edifício Master é montado quase na ordem da filmagem", explica. "Não uso elementos de retórica, não mudo a imagem, não ponho uma cena alegre e outra triste depois." Aos 72 anos e mais de 30 de carreira, Coutinho avalia os rumos do cinema nacional - tanto em documentários quanto em ficções - com olhar tranqüilo, mas lúcido. Para ele, está longe o dia em que os cineastas brasileiros conseguirão produzir sem a ajuda de incentivos fiscais e emenda ainda que não há problema em fazer "filmes iguais à televisão" para conseguir atingir o mercado. "Mas, se for preciso fazer filmes assim para levar o público, para que ter cinema?", indaga. Em conversa exclusiva com a Revista E, Eduardo Coutinho falou também de como chega até os personagens que retrata em seus filmes, do contexto no qual produziu Peões (2004) e do sucesso de Edifício Master (2002). A seguir, trechos.
Peões teve uma repercussão para além do público de documentário - provavelmente por trazer uma visão política e falar do presidente Lula, entre outras coisas. Qual foi sua motivação?
O [cineasta] João Moreira Salles tinha a idéia de fazer um filme sobre a eleição. Isso nunca havia sido feito no Brasil - já havia iniciativas assim na França e nos Estados Unidos. E era uma eleição fascinante, o favorito era um líder operário numa disputa de segundo turno. Ou seja, perdendo ou ganhando, seria uma grande campanha. Pois bem, dois candidatos. Eu faria um documentário com um e o João com o outro. Isso ficou decidido um ano antes das eleições. O tempo foi passando, o Lula era favorito, nem se sabia se o Serra seria o candidato, ou se chegaria ao segundo turno. Sugeri ao João que fizesse o Lula, cuja campanha era histórica, e que eu fizesse com os metalúrgicos de São Bernardo do Campo, em vez de fazer com o Serra ou sobre a luta de um contra o outro. Luta que era boba, porque o Lula era franco favorito. Ou seja, minha parte não era sobre o Lula, era sobre a memória dos metalúrgicos de São Bernardo, que durante a eleição ficou mais viva. Daí, fomos ao Lula, foi a única vez em que estive com ele. Então, Lula disse, com toda razão, que a campanha era histórica, independentemente de ele ganhar ou perder, e que ele só existia graças às greves de São Bernardo. Isso significou que ele achava mais interessante a minha idéia. O João fez o Lula [o documentário de João Moreira Salles, também de 2004, se chamou Entreatos], que foi um prazer para ele fazer, trabalhou 18 horas por dia etc., e eu fui para São Bernardo e me livrei de filmar o grande personagem porque filmei o reflexo do passado. Cada um tinha um método de produção. Eu filmei um pouco antes do primeiro turno até o dia 27 de outubro, foram três semanas de pesquisa e um mês de filmagem. Fui procurando os personagens através dos sindicatos, foi muito penoso e difícil, fiquei 50 dias em São Bernardo.
Por que você acha que esse filme teve toda essa repercussão?
Ele foi para as primeiras páginas dos jornais porque mandamos uma fita para os jornais e os jornalistas acabaram mostrando para outras pessoas. Começaram a falar do filme e a cotá-lo. Com isso, provocaram coisas na primeira página. Vira um inferno quando se sai do caderno de cultura para a primeira página. Isso deu uma repercussão muito grande. Teve um dia em que passamos dez horas dando entrevistas em São Paulo. Tudo isso porque era um documentário sobre o Lula - ainda que o meu não fosse. Mas esse sucesso todo se deveu mais ao Entreatos. Na época, lembro que mencionei que tinha retirado uma entrevista de meu documentário - o trecho no qual uma mulher falava sobre o Lula - e isso foi um escândalo. Os jornais disseram que eu tinha tirado a participação de uma mulher, que dizia que o Lula bebia, para poupar o candidato do PT. Mas o que aconteceu, na verdade, foi que, ao assistir à cópia final, percebi que o depoimento seria ruim para essa mulher. Era uma pessoa que sofre do coração e que se sentira uma traidora, então, tirei o trecho. E os jornais utilizaram isso como se eu quisesse proteger o Lula. Por isso, o lançamento foi um inferno. Mas, mesmo com essa grande repercussão política e as primeiras páginas dos jornais, os filmes não resultaram no público que a gente esperava. Os dois juntos foram vistos por cerca de 60 mil espectadores. Peões deve ter tido por volta de 20 mil. Mas era complicado também porque os documentários eram exibidos em sessões seguidas uma da outra, e é muito difícil lançar dois filmes juntos. Foi uma experiência diferente, mas eu espero nunca mais entrar no olho do furacão da política, não quero saber disso.
Você acha que o filme suscitou alguma discussão procedente?
Bem, 90% dos comentários se referiam ao filme do João, o Entreatos. Antes do escândalo, todo mundo batia palmas para o Lula e para o programa do Duda Mendonça [publicitário responsável pela campanha eleitoral de Lula à Presidência]. Coisas que, inclusive, não eram nada escandalosas na época. Depois que o filme estava quase pronto, veio o negócio da rinha de galos do Duda Mendonça [foi noticiado que o publicitário freqüentava locais que promoviam brigas de galos]. Enfim, o prato cheio era a política nacional daquele momento - Lula, sua campanha, quem era oposição etc. O meu filme não gerou esse tipo de discussão porque não falava de nada disso. Era um filme sobre o cotidiano dos metalúrgicos do ABC, que foram mais ou menos militantes naquela época, e que contam suas lembranças - hoje um é taxista, o outro vive de bicos e por aí vai. Ninguém está rico, mas alguns melhoraram de vida, outros morreram por causa da bebida, enfim, assim é a vida. Só que ninguém se interessou por isso, não houve comentários polêmicos sobre meu filme
Como começa a construção de um filme como Edifício Master, por exemplo?
Aí foi diferente. Primeiro veio a idéia de que um filme sobre a classe média não me interessava porque sei o que é isso. Um filme sobre Copacabana também não, porque é grande demais. Daí, a minha assistente tinha a idéia de fazer um filme sobre um prédio de Copacabana. Isso me interessava. Eu "roubei" a idéia, em acordo com ela, claro. A idéia do prédio me interessava porque tinha aquela coisa do micro falando do macro, a metonímia. Eu só trabalho assim. Achar o prédio foi difícil, nenhum condomínio de prédios conjugados aceita ser filmado, muitos pelos problemas com drogas. Até que por acaso achamos um prédio - no qual, descobri mais tarde, eu tinha morado 35 anos antes. Uma amiga minha, que tinha morado lá havia dois anos, disse que, se falássemos com o síndico que era um trabalho envolvendo cultura, talvez ele topasse. Nesse momento eu não sabia que já tinha morado nesse prédio. Nós fomos até lá, falamos que era sobre cultura, falamos que era um filme sobre Copacabana, e ele topou. Pelo fato de ele ter feito a obra de reforma moral e física do prédio, achou que o filme era um pouco sobre isso. Enfim, acabou nos dando total liberdade, o que é muito difícil. E ele era ditador, resolvia sem o consenso do condomínio e tal. Mas o filme não era sobre a reforma do prédio, era sobre a vida de cada um. Mesmo assim, ele não nos impediu de nada. Chegamos aos personagens em três semanas dolorosas de pesquisas. Tínhamos de bater de porta em porta. Meus pesquisadores iam e tocavam a campainha - às vezes não tinha ninguém em casa, outras vezes o morador só voltava à noite. Havia apartamentos de temporada e estavam vazios. Em um apartamento, a mulher que atendeu a porta estava bêbada. Teve também uma pessoa que ficou brava e disse que não queria falar. Em outros, meus pesquisadores sentavam e conversavam. Às vezes, conversavam e viam que não era um bom personagem. Saíam e iam para outro. Na segunda semana, eu achava que não daria para fazer o filme, porque os personagens se reservavam, não se entregavam. Até que, no meio da segunda semana, as coisas começaram a melhorar, e eu disse que era lá mesmo que tinha de ser. Tinha de ser somente em um prédio, porque senão estragaria o filme. Não podia pegar um cara que diziam que seria bom, mas que era do Posto 6. Tinha de ser do Edifício Master, com pessoas típicas do próprio prédio, que representassem a ideologia do edifício.
Qual o critério para a seleção das cenas que ficaram e das que saíram do documentário?
Sessenta horas de filmagens viram duas de filme. Imagine que você está em um ônibus, tem gente conversando atrás de você. De repente, uma mulher começa a contar uma história para a outra, você acha fascinantes a história e o jeito de ela contar. São essas pessoas que ficam no filme, são as pessoas que sabem contar, não é só porque a história é boa. As pessoas que não têm muito para contar, ou contam mal - às vezes contam mal porque são prolixos ou não têm força na fala - não ficam no filme. Isso é um processo lento, que discuto com minha montadora e com meus amigos. Alguns são eliminados de cara, como uma mulher que ficou dizendo que era amiga do Ary Fontoura, que falava para a Rede Globo etc. Os outros vão sendo montados e pouco a pouco vão passando por uma peneira. Alguns saem por motivos éticos. Tinha um garoto de 17 anos, por exemplo, cuja cena era extraordinária, mas os pais não deram autorização, então o tirei do filme. Lamento, pois era uma cena maravilhosa. Já o senhor que cantou My Way, do Frank Sinatra, tinha um lado patético-doloroso, mas ele ficou muito feliz de ter feito.
Você falou da questão ética, mas usou a expressão "patético"...
Várias pessoas viram o filme e disseram que invadi a intimidade dos moradores, porque o público ria etc. Vejo todos os patéticos do filme como patéticos positivos. É como dizer que uma carta de amor é patética. Todas são! Para mim, nenhum deles é ridículo. Agora, o público ri nas horas devidas e indevidas, e não posso censurar o público. Então, quando os espectadores riem com o personagem está perfeito, agora quando o público ri do personagem, aí depende. Podem estar zombando, mas não posso controlar a reação do público. É claro que a mulher que não se matou por causa da C&A tem uma história incrível, e as pessoas riem. Mas você acha que ela fica chateada? É uma história maravilhosa, pois ela não se matou. É uma história com final feliz e muito engraçada, então, é justo que as pessoas riam. Em um público de 200 pessoas, mesmo no Espaço Unibanco [sala de cinema de São Paulo], que é um tipo de público mais intelectualizado, cada um é um, os juízos são diferentes. Tem a mulher que fala que o brasileiro é preguiçoso. Ela está exprimindo, com muita força, uma idéia que tem, motivada pelo background dela. É maravilhoso. A idéia dela é falsa, mas tem razões que vêm de seu passado. Cinqüenta anos trabalhando na mesma família, educação puritana na Espanha. E ela diz isso com uma força extraordinária.
Por que a opção pelo documentário?
O documentário não precisa ser perfeito, a lógica do documentário não é a perfeição. O documentário aceita tudo. Se a coisa é importante, mesmo com o diafragma da câmera errado, vale, isso não tem o menor problema. Um filme de ficção tem de ser perfeito tecnicamente. No Babilônia 2000 (2000) há uma hora em que o fotógrafo fecha o diafragma, fica tudo preto e ele abre de novo, é maravilhoso. A cena era forte e ela continua. Então, essa liberdade de improvisar, de aceitar o erro, de ser inacabado e imperfeito, coisas típicas do documentário, é maravilhosa. Porque na ficção posso contratar alguém e faço o que quiser, pois estou lidando com um ator. No documentário não, tenho de filmar um cara que vai dizer que não quer que filmem o trabalho dele, não há dinheiro que pague para ele mudar de idéia, ninguém resolve. O documentário parte de coisas que o dinheiro não resolve, parte da cumplicidade entre as pessoas. Se o cara não quiser construir o personagem para mim e jogar o jogo, não tem filme. Dependo inteiramente do outro, não é o cachê que vai fazê-lo falar. Isso me agrada. Se eu não encontrar personagens bons, não tenho filme. Joga-se dinheiro fora, então, acabou e tchau, não há mais filme.
E como você consegue essa cumplicidade?
O problema começa com a pesquisa, o pesquisador precisa ser cortês enquanto está pesquisando. Antes de tudo, tem de ser polido, tem de respeitar o outro. Se ele fizer isso, quando eu chegar já sou do bem, o personagem não me conhece, não sabe que vi a entrevista dele e me recebe bem, isso porque os pesquisadores trataram bem dele. Segunda coisa: logo em seguida chega uma câmera com mais sete pessoas. Às vezes isso inibe o entrevistado. Pode ser que ele seja bom na hora da pesquisa, mas não no jogo. Ou pode ser que a câmera catalise o efeito teatral nele e ele represente melhor, porque tudo é teatro. Há vários casos em que a pesquisa é pior e, de repente, nas filmagens surge algo maravilhoso que nunca havia aparecido nas pesquisas. Agora, isso não é fácil, não mexo na câmera, é tudo filmado no mesmo ângulo. Depois de 20 minutos, a pessoa esquece que está sendo filmada, é como se fosse um diálogo sem câmera. Tudo depende de saber perguntar, o que perguntar, como perguntar, quando ficar em silêncio, nenhum manual ensina isso. Eu tenho mais de 30 anos de experiência, e erro e acerto a todo momento. Não estou fazendo uma entrevista jornalística na qual tenho uma pauta para cumprir. Às vezes, tenho pesquisa. Por exemplo, um cara me conta uma história bacana, mas de repente sai uma outra história muito mais bacana que não está na pesquisa. Então, não existe pauta, temos de estar abertos para isso. Nunca sei o que vai acontecer. Às vezes há alguma história que não contam na pesquisa nem nas filmagens, porque ficam com medo. A todo momento é um jogo, que tem a ver com sensibilidade, experiência de vida. Quero fazer um filme em que as pessoas construam seus personagens, porque na vida real nós construímos nossos personagens - no trabalho ou em casa, em qualquer lugar.
Qual a sua opinião sobre documentaristas que parecem estar em busca de comprovar uma tese?
Isso é a coisa mais comum do mundo. Isso para mim é mortal, o Michael Moore [de Tiros em Columbine, 2002] faz isso. Se sei o que vou dizer antes de começar o filme, não faço.
Você concorda que seus documentários, apesar de haver edição etc., são "obras abertas"?
Existem histórias que não se completam, há fragmentos, vidas mais completas e menos completas. E, na montagem, não uso elementos de retórica, não mudo a imagem, não ponho uma cena alegre e outra triste depois, o Master é montado quase na ordem da filmagem. Então, não é assim: agora um cara triste, agora um alegre. Isso é adjetivo, é retórica. No final poderia ter colocado uma imagem triste, mas não, botei uma menina que diz que ainda não sabia o que queria ser da vida. Durante a montagem, tento intervir o mínimo no que aconteceu na hora do encontro. Cada um lê como quer, há sempre leituras poéticas, sociológicas, de direita e de esquerda, está aberto. O filme não muda a cabeça de ninguém, está aberto para todo tipo de leitura, o que é um risco, mas é um risco bacana. O que quero dizer é que um filme anti-racista dificilmente transforma um racista. Essa pessoa pode se transformar por meio de mil experiências de vida, mil filmes, mas apenas um? Então, acho que, se fizer um filme aberto sobre o racismo para os jovens, ainda pode dar o que pensar.
Você tem sentido nos últimos anos uma mudança de expectativa em relação ao documentário no Brasil?
No Brasil são feitos muitos documentários, mas quase não passam na televisão. Há gente que critica em jornal, mas a câmera digital tornou a execução muito mais fácil e mais barata. E existem influências, como o cinema do Michael Moore - apesar de ser uma exceção, porque dá 100 milhões de dólares. Cada um segue seu caminho, acho que ele faz um filme para os já convencidos, mas ele é engraçado, tem uma série de coisas interessantes. Só que não tem nada a ver com o que eu faço. Há filmes de entrevistas que são bons, outros não, alguns são ótimos. Há filmes com outra visão: filmes do João Salles, da Sandra Kogut, Paulo Sacramento, Kiko Goifman são de outro tipo, existem diferentes tipos de documentários. Trabalho com a palavra, ponto final. Não quero que ninguém me siga, faço isso porque quero e gosto de fazer. Tenho 72 anos e uma experiência de vida que me leva a fazer desse jeito. Outros têm 20 e poucos anos e querem descobrir o caminho deles. Sofrem influência, depois se livram ou não, isso é outro problema. Mas faço o que quero, são filmes relativamente baratos, e para o que servem ou não eu nunca vou saber. A função do cinema em geral, e do documentário em particular, é lançar dúvidas para a pessoa pensar melhor, melhorar as perguntas, pois elas são muito malfeitas.
De uma maneira geral, você acha que o cinema brasileiro tem caminhado dessa maneira?
O cinema brasileiro tem mil problemas econômicos, sempre vai ter de pedir um pouco de dinheiro para o Estado. Porque o país não tem uma economia de cinema. Há a lei de incentivo [Lei do Audiovisual, n° 8.685/93, que cria mecanismos de apoio a essa produção], que de um lado é boa e de outro é ruim, porque aumenta os orçamentos. Existe todo tipo de filme interessante, o modelo argentino é mais barato e é interessante, tem gente que acha que os filmes argentinos estão melhores que os brasileiros, mas conheço pouco para poder comparar. O cinema brasileiro tem de tudo, é difícil falar dele no geral, está em processo, vamos ver o que acontece nestes anos. Tudo bem que façam filmes iguais à televisão para ter mercado. Mas se for preciso fazer assim para levar o público, para que ter cinema?
Você acredita que seja possível construir uma indústria cinematográfica no Brasil?
Não sei, acho difícil. O cinema está em crise, o DVD está matando as salas. Creio que ainda durante muitos anos nosso cinema vai depender ou de incentivo fiscal ou do Ministério da Cultura ou da Petrobrás, o que é tudo Estado no fim. Você não conhece nenhum capitalista louco que diz que vai investir em cinema, isso não existe. Isso não existe aqui e em vários países do mundo. Apenas o cinema norte-americano e o indiano podem viver sem proteção. O cinema francês faz porque tem uma série de leis extraordinárias de proteção - como a obrigação de a televisão reproduzir - e o resultado é que pode existir uma indústria de cinema. Mas é uma indústria que se baseia na proteção do Estado. Independentemente de assumir um governo de direita ou de esquerda, continua baseada naquilo. Não existe isso de acreditar que o Brasil, numa etapa de crise geral de cinema, vai ter uma indústria de cinema sem o apoio do Estado. E esses filmes de televisão não precisam de apoio do Estado. Agora, como o documentário não chega à Globo e ao público, são questões que estão longe de mim. O que eu faço é artesanato, o documentário é artesanal, é mais barato, e isso é meu campo, esse campo é um pouco restrito e ponto final.
O diretor de documentários fala dos rumos do cinema brasileiro e de como consegue a cumplicidade de seus personagens
Eduardo Coutinho é um homem pouco afeito a conceitos. Seu trabalho é concreto. Por trás da idéia de seus filmes raramente se esconde algum código indecifrável aos "leigos". Até mesmo a montagem de seus trabalhos tende a ser o mais linear possível, e por opção. "Edifício Master é montado quase na ordem da filmagem", explica. "Não uso elementos de retórica, não mudo a imagem, não ponho uma cena alegre e outra triste depois." Aos 72 anos e mais de 30 de carreira, Coutinho avalia os rumos do cinema nacional - tanto em documentários quanto em ficções - com olhar tranqüilo, mas lúcido. Para ele, está longe o dia em que os cineastas brasileiros conseguirão produzir sem a ajuda de incentivos fiscais e emenda ainda que não há problema em fazer "filmes iguais à televisão" para conseguir atingir o mercado. "Mas, se for preciso fazer filmes assim para levar o público, para que ter cinema?", indaga. Em conversa exclusiva com a Revista E, Eduardo Coutinho falou também de como chega até os personagens que retrata em seus filmes, do contexto no qual produziu Peões (2004) e do sucesso de Edifício Master (2002). A seguir, trechos.
Peões teve uma repercussão para além do público de documentário - provavelmente por trazer uma visão política e falar do presidente Lula, entre outras coisas. Qual foi sua motivação?
O [cineasta] João Moreira Salles tinha a idéia de fazer um filme sobre a eleição. Isso nunca havia sido feito no Brasil - já havia iniciativas assim na França e nos Estados Unidos. E era uma eleição fascinante, o favorito era um líder operário numa disputa de segundo turno. Ou seja, perdendo ou ganhando, seria uma grande campanha. Pois bem, dois candidatos. Eu faria um documentário com um e o João com o outro. Isso ficou decidido um ano antes das eleições. O tempo foi passando, o Lula era favorito, nem se sabia se o Serra seria o candidato, ou se chegaria ao segundo turno. Sugeri ao João que fizesse o Lula, cuja campanha era histórica, e que eu fizesse com os metalúrgicos de São Bernardo do Campo, em vez de fazer com o Serra ou sobre a luta de um contra o outro. Luta que era boba, porque o Lula era franco favorito. Ou seja, minha parte não era sobre o Lula, era sobre a memória dos metalúrgicos de São Bernardo, que durante a eleição ficou mais viva. Daí, fomos ao Lula, foi a única vez em que estive com ele. Então, Lula disse, com toda razão, que a campanha era histórica, independentemente de ele ganhar ou perder, e que ele só existia graças às greves de São Bernardo. Isso significou que ele achava mais interessante a minha idéia. O João fez o Lula [o documentário de João Moreira Salles, também de 2004, se chamou Entreatos], que foi um prazer para ele fazer, trabalhou 18 horas por dia etc., e eu fui para São Bernardo e me livrei de filmar o grande personagem porque filmei o reflexo do passado. Cada um tinha um método de produção. Eu filmei um pouco antes do primeiro turno até o dia 27 de outubro, foram três semanas de pesquisa e um mês de filmagem. Fui procurando os personagens através dos sindicatos, foi muito penoso e difícil, fiquei 50 dias em São Bernardo.
Por que você acha que esse filme teve toda essa repercussão?
Ele foi para as primeiras páginas dos jornais porque mandamos uma fita para os jornais e os jornalistas acabaram mostrando para outras pessoas. Começaram a falar do filme e a cotá-lo. Com isso, provocaram coisas na primeira página. Vira um inferno quando se sai do caderno de cultura para a primeira página. Isso deu uma repercussão muito grande. Teve um dia em que passamos dez horas dando entrevistas em São Paulo. Tudo isso porque era um documentário sobre o Lula - ainda que o meu não fosse. Mas esse sucesso todo se deveu mais ao Entreatos. Na época, lembro que mencionei que tinha retirado uma entrevista de meu documentário - o trecho no qual uma mulher falava sobre o Lula - e isso foi um escândalo. Os jornais disseram que eu tinha tirado a participação de uma mulher, que dizia que o Lula bebia, para poupar o candidato do PT. Mas o que aconteceu, na verdade, foi que, ao assistir à cópia final, percebi que o depoimento seria ruim para essa mulher. Era uma pessoa que sofre do coração e que se sentira uma traidora, então, tirei o trecho. E os jornais utilizaram isso como se eu quisesse proteger o Lula. Por isso, o lançamento foi um inferno. Mas, mesmo com essa grande repercussão política e as primeiras páginas dos jornais, os filmes não resultaram no público que a gente esperava. Os dois juntos foram vistos por cerca de 60 mil espectadores. Peões deve ter tido por volta de 20 mil. Mas era complicado também porque os documentários eram exibidos em sessões seguidas uma da outra, e é muito difícil lançar dois filmes juntos. Foi uma experiência diferente, mas eu espero nunca mais entrar no olho do furacão da política, não quero saber disso.
Você acha que o filme suscitou alguma discussão procedente?
Bem, 90% dos comentários se referiam ao filme do João, o Entreatos. Antes do escândalo, todo mundo batia palmas para o Lula e para o programa do Duda Mendonça [publicitário responsável pela campanha eleitoral de Lula à Presidência]. Coisas que, inclusive, não eram nada escandalosas na época. Depois que o filme estava quase pronto, veio o negócio da rinha de galos do Duda Mendonça [foi noticiado que o publicitário freqüentava locais que promoviam brigas de galos]. Enfim, o prato cheio era a política nacional daquele momento - Lula, sua campanha, quem era oposição etc. O meu filme não gerou esse tipo de discussão porque não falava de nada disso. Era um filme sobre o cotidiano dos metalúrgicos do ABC, que foram mais ou menos militantes naquela época, e que contam suas lembranças - hoje um é taxista, o outro vive de bicos e por aí vai. Ninguém está rico, mas alguns melhoraram de vida, outros morreram por causa da bebida, enfim, assim é a vida. Só que ninguém se interessou por isso, não houve comentários polêmicos sobre meu filme
Como começa a construção de um filme como Edifício Master, por exemplo?
Aí foi diferente. Primeiro veio a idéia de que um filme sobre a classe média não me interessava porque sei o que é isso. Um filme sobre Copacabana também não, porque é grande demais. Daí, a minha assistente tinha a idéia de fazer um filme sobre um prédio de Copacabana. Isso me interessava. Eu "roubei" a idéia, em acordo com ela, claro. A idéia do prédio me interessava porque tinha aquela coisa do micro falando do macro, a metonímia. Eu só trabalho assim. Achar o prédio foi difícil, nenhum condomínio de prédios conjugados aceita ser filmado, muitos pelos problemas com drogas. Até que por acaso achamos um prédio - no qual, descobri mais tarde, eu tinha morado 35 anos antes. Uma amiga minha, que tinha morado lá havia dois anos, disse que, se falássemos com o síndico que era um trabalho envolvendo cultura, talvez ele topasse. Nesse momento eu não sabia que já tinha morado nesse prédio. Nós fomos até lá, falamos que era sobre cultura, falamos que era um filme sobre Copacabana, e ele topou. Pelo fato de ele ter feito a obra de reforma moral e física do prédio, achou que o filme era um pouco sobre isso. Enfim, acabou nos dando total liberdade, o que é muito difícil. E ele era ditador, resolvia sem o consenso do condomínio e tal. Mas o filme não era sobre a reforma do prédio, era sobre a vida de cada um. Mesmo assim, ele não nos impediu de nada. Chegamos aos personagens em três semanas dolorosas de pesquisas. Tínhamos de bater de porta em porta. Meus pesquisadores iam e tocavam a campainha - às vezes não tinha ninguém em casa, outras vezes o morador só voltava à noite. Havia apartamentos de temporada e estavam vazios. Em um apartamento, a mulher que atendeu a porta estava bêbada. Teve também uma pessoa que ficou brava e disse que não queria falar. Em outros, meus pesquisadores sentavam e conversavam. Às vezes, conversavam e viam que não era um bom personagem. Saíam e iam para outro. Na segunda semana, eu achava que não daria para fazer o filme, porque os personagens se reservavam, não se entregavam. Até que, no meio da segunda semana, as coisas começaram a melhorar, e eu disse que era lá mesmo que tinha de ser. Tinha de ser somente em um prédio, porque senão estragaria o filme. Não podia pegar um cara que diziam que seria bom, mas que era do Posto 6. Tinha de ser do Edifício Master, com pessoas típicas do próprio prédio, que representassem a ideologia do edifício.
Qual o critério para a seleção das cenas que ficaram e das que saíram do documentário?
Sessenta horas de filmagens viram duas de filme. Imagine que você está em um ônibus, tem gente conversando atrás de você. De repente, uma mulher começa a contar uma história para a outra, você acha fascinantes a história e o jeito de ela contar. São essas pessoas que ficam no filme, são as pessoas que sabem contar, não é só porque a história é boa. As pessoas que não têm muito para contar, ou contam mal - às vezes contam mal porque são prolixos ou não têm força na fala - não ficam no filme. Isso é um processo lento, que discuto com minha montadora e com meus amigos. Alguns são eliminados de cara, como uma mulher que ficou dizendo que era amiga do Ary Fontoura, que falava para a Rede Globo etc. Os outros vão sendo montados e pouco a pouco vão passando por uma peneira. Alguns saem por motivos éticos. Tinha um garoto de 17 anos, por exemplo, cuja cena era extraordinária, mas os pais não deram autorização, então o tirei do filme. Lamento, pois era uma cena maravilhosa. Já o senhor que cantou My Way, do Frank Sinatra, tinha um lado patético-doloroso, mas ele ficou muito feliz de ter feito.
Você falou da questão ética, mas usou a expressão "patético"...
Várias pessoas viram o filme e disseram que invadi a intimidade dos moradores, porque o público ria etc. Vejo todos os patéticos do filme como patéticos positivos. É como dizer que uma carta de amor é patética. Todas são! Para mim, nenhum deles é ridículo. Agora, o público ri nas horas devidas e indevidas, e não posso censurar o público. Então, quando os espectadores riem com o personagem está perfeito, agora quando o público ri do personagem, aí depende. Podem estar zombando, mas não posso controlar a reação do público. É claro que a mulher que não se matou por causa da C&A tem uma história incrível, e as pessoas riem. Mas você acha que ela fica chateada? É uma história maravilhosa, pois ela não se matou. É uma história com final feliz e muito engraçada, então, é justo que as pessoas riam. Em um público de 200 pessoas, mesmo no Espaço Unibanco [sala de cinema de São Paulo], que é um tipo de público mais intelectualizado, cada um é um, os juízos são diferentes. Tem a mulher que fala que o brasileiro é preguiçoso. Ela está exprimindo, com muita força, uma idéia que tem, motivada pelo background dela. É maravilhoso. A idéia dela é falsa, mas tem razões que vêm de seu passado. Cinqüenta anos trabalhando na mesma família, educação puritana na Espanha. E ela diz isso com uma força extraordinária.
Por que a opção pelo documentário?
O documentário não precisa ser perfeito, a lógica do documentário não é a perfeição. O documentário aceita tudo. Se a coisa é importante, mesmo com o diafragma da câmera errado, vale, isso não tem o menor problema. Um filme de ficção tem de ser perfeito tecnicamente. No Babilônia 2000 (2000) há uma hora em que o fotógrafo fecha o diafragma, fica tudo preto e ele abre de novo, é maravilhoso. A cena era forte e ela continua. Então, essa liberdade de improvisar, de aceitar o erro, de ser inacabado e imperfeito, coisas típicas do documentário, é maravilhosa. Porque na ficção posso contratar alguém e faço o que quiser, pois estou lidando com um ator. No documentário não, tenho de filmar um cara que vai dizer que não quer que filmem o trabalho dele, não há dinheiro que pague para ele mudar de idéia, ninguém resolve. O documentário parte de coisas que o dinheiro não resolve, parte da cumplicidade entre as pessoas. Se o cara não quiser construir o personagem para mim e jogar o jogo, não tem filme. Dependo inteiramente do outro, não é o cachê que vai fazê-lo falar. Isso me agrada. Se eu não encontrar personagens bons, não tenho filme. Joga-se dinheiro fora, então, acabou e tchau, não há mais filme.
E como você consegue essa cumplicidade?
O problema começa com a pesquisa, o pesquisador precisa ser cortês enquanto está pesquisando. Antes de tudo, tem de ser polido, tem de respeitar o outro. Se ele fizer isso, quando eu chegar já sou do bem, o personagem não me conhece, não sabe que vi a entrevista dele e me recebe bem, isso porque os pesquisadores trataram bem dele. Segunda coisa: logo em seguida chega uma câmera com mais sete pessoas. Às vezes isso inibe o entrevistado. Pode ser que ele seja bom na hora da pesquisa, mas não no jogo. Ou pode ser que a câmera catalise o efeito teatral nele e ele represente melhor, porque tudo é teatro. Há vários casos em que a pesquisa é pior e, de repente, nas filmagens surge algo maravilhoso que nunca havia aparecido nas pesquisas. Agora, isso não é fácil, não mexo na câmera, é tudo filmado no mesmo ângulo. Depois de 20 minutos, a pessoa esquece que está sendo filmada, é como se fosse um diálogo sem câmera. Tudo depende de saber perguntar, o que perguntar, como perguntar, quando ficar em silêncio, nenhum manual ensina isso. Eu tenho mais de 30 anos de experiência, e erro e acerto a todo momento. Não estou fazendo uma entrevista jornalística na qual tenho uma pauta para cumprir. Às vezes, tenho pesquisa. Por exemplo, um cara me conta uma história bacana, mas de repente sai uma outra história muito mais bacana que não está na pesquisa. Então, não existe pauta, temos de estar abertos para isso. Nunca sei o que vai acontecer. Às vezes há alguma história que não contam na pesquisa nem nas filmagens, porque ficam com medo. A todo momento é um jogo, que tem a ver com sensibilidade, experiência de vida. Quero fazer um filme em que as pessoas construam seus personagens, porque na vida real nós construímos nossos personagens - no trabalho ou em casa, em qualquer lugar.
Qual a sua opinião sobre documentaristas que parecem estar em busca de comprovar uma tese?
Isso é a coisa mais comum do mundo. Isso para mim é mortal, o Michael Moore [de Tiros em Columbine, 2002] faz isso. Se sei o que vou dizer antes de começar o filme, não faço.
Você concorda que seus documentários, apesar de haver edição etc., são "obras abertas"?
Existem histórias que não se completam, há fragmentos, vidas mais completas e menos completas. E, na montagem, não uso elementos de retórica, não mudo a imagem, não ponho uma cena alegre e outra triste depois, o Master é montado quase na ordem da filmagem. Então, não é assim: agora um cara triste, agora um alegre. Isso é adjetivo, é retórica. No final poderia ter colocado uma imagem triste, mas não, botei uma menina que diz que ainda não sabia o que queria ser da vida. Durante a montagem, tento intervir o mínimo no que aconteceu na hora do encontro. Cada um lê como quer, há sempre leituras poéticas, sociológicas, de direita e de esquerda, está aberto. O filme não muda a cabeça de ninguém, está aberto para todo tipo de leitura, o que é um risco, mas é um risco bacana. O que quero dizer é que um filme anti-racista dificilmente transforma um racista. Essa pessoa pode se transformar por meio de mil experiências de vida, mil filmes, mas apenas um? Então, acho que, se fizer um filme aberto sobre o racismo para os jovens, ainda pode dar o que pensar.
Você tem sentido nos últimos anos uma mudança de expectativa em relação ao documentário no Brasil?
No Brasil são feitos muitos documentários, mas quase não passam na televisão. Há gente que critica em jornal, mas a câmera digital tornou a execução muito mais fácil e mais barata. E existem influências, como o cinema do Michael Moore - apesar de ser uma exceção, porque dá 100 milhões de dólares. Cada um segue seu caminho, acho que ele faz um filme para os já convencidos, mas ele é engraçado, tem uma série de coisas interessantes. Só que não tem nada a ver com o que eu faço. Há filmes de entrevistas que são bons, outros não, alguns são ótimos. Há filmes com outra visão: filmes do João Salles, da Sandra Kogut, Paulo Sacramento, Kiko Goifman são de outro tipo, existem diferentes tipos de documentários. Trabalho com a palavra, ponto final. Não quero que ninguém me siga, faço isso porque quero e gosto de fazer. Tenho 72 anos e uma experiência de vida que me leva a fazer desse jeito. Outros têm 20 e poucos anos e querem descobrir o caminho deles. Sofrem influência, depois se livram ou não, isso é outro problema. Mas faço o que quero, são filmes relativamente baratos, e para o que servem ou não eu nunca vou saber. A função do cinema em geral, e do documentário em particular, é lançar dúvidas para a pessoa pensar melhor, melhorar as perguntas, pois elas são muito malfeitas.
De uma maneira geral, você acha que o cinema brasileiro tem caminhado dessa maneira?
O cinema brasileiro tem mil problemas econômicos, sempre vai ter de pedir um pouco de dinheiro para o Estado. Porque o país não tem uma economia de cinema. Há a lei de incentivo [Lei do Audiovisual, n° 8.685/93, que cria mecanismos de apoio a essa produção], que de um lado é boa e de outro é ruim, porque aumenta os orçamentos. Existe todo tipo de filme interessante, o modelo argentino é mais barato e é interessante, tem gente que acha que os filmes argentinos estão melhores que os brasileiros, mas conheço pouco para poder comparar. O cinema brasileiro tem de tudo, é difícil falar dele no geral, está em processo, vamos ver o que acontece nestes anos. Tudo bem que façam filmes iguais à televisão para ter mercado. Mas se for preciso fazer assim para levar o público, para que ter cinema?
Você acredita que seja possível construir uma indústria cinematográfica no Brasil?
Não sei, acho difícil. O cinema está em crise, o DVD está matando as salas. Creio que ainda durante muitos anos nosso cinema vai depender ou de incentivo fiscal ou do Ministério da Cultura ou da Petrobrás, o que é tudo Estado no fim. Você não conhece nenhum capitalista louco que diz que vai investir em cinema, isso não existe. Isso não existe aqui e em vários países do mundo. Apenas o cinema norte-americano e o indiano podem viver sem proteção. O cinema francês faz porque tem uma série de leis extraordinárias de proteção - como a obrigação de a televisão reproduzir - e o resultado é que pode existir uma indústria de cinema. Mas é uma indústria que se baseia na proteção do Estado. Independentemente de assumir um governo de direita ou de esquerda, continua baseada naquilo. Não existe isso de acreditar que o Brasil, numa etapa de crise geral de cinema, vai ter uma indústria de cinema sem o apoio do Estado. E esses filmes de televisão não precisam de apoio do Estado. Agora, como o documentário não chega à Globo e ao público, são questões que estão longe de mim. O que eu faço é artesanato, o documentário é artesanal, é mais barato, e isso é meu campo, esse campo é um pouco restrito e ponto final.
entrevista com Ismail Xavier
Ismail Xavier:
O cinema e os filmes ou doze temas em torno da imagem
Entrevista a Pedro Plaza Pinto, Mariana Baltar Freire, Fernando Morais e Lécio Augusto Ramos*
Niterói/Rio de Janeiro/São Paulo março/abril/outubro de 2002
"Tudo se empobrece quando se fala do cinema sem falar dos filmes.
Não se pode resenhar conceitos dos grande autores e observar os filme
tateando com uma bengala e fazendo ouvidos de mercador."
1. Biografia e Trajetória
Queríamos inicialmente desenhar um perfil de sua trajetória profissional. Primeiro, alguns dados biográficos que você achar pertinentes. Depois: como se deu a sua aproximação com o cinema? Como foi a sua formação na USP? Que influências (brasileiras e estrangeiras) foram decisivas para você? (Paulo Emílio, Antônio Cândido e a geração de ouro da FFCL da USP, etc.) Você certa vez confidenciou que atua numa área crítica, de reflexão, e não na área da pesquisa em fontes primárias (polivalência, por exemplo, que podemos atribuir a Jean-Claude Bernardet, a Maria Rita Galvão, a Carlos Roberto de Souza, a João Luiz Vieira, entre outros. Isto significaria que você prefere por opção trabalhar num campo mais teórico, mais reflexivo por vocação ou opção pessoal?
RESPOSTA
A minha aproximação com o cinema se deu quando entrei na USP, em 1965, para estudar engenharia. Por influência de amigos com quem trocava idéias sobre tudo, já desde a época do colegial, passei a freqüentar salas de cinema de arte (como o Cine Bijou) e entrei para a Sociedade Amigos da Cinemateca, em 1966. Como sócio da SAC pude ouvir as pessoas ligadas à Cinemateca e que compunham um pensamento cinematográfico de esquerda: Paulo Emilio, Jean-Claude Bernardet, Rudá de Andrade, João Batista de Andrade, Francisco Ramalho Jr., João Silvério Trevisan. No entanto, o primeiro curso sobre cinema que fiz se deu no Foto Cine-Clube Bandeirantes, organizado por Adhemar Carvalhaes, que fazia parte da crítica em oposição ao grupo da Cinemateca. A parte interessante do curso contou com a participação de cineastas como Roberto Santos , então trazendo o prestígio de quem havia feito a obra-prima A hora e a vez de Augusto Matraga, Anselmo Duarte e Walter Hugo Khouri, o que, com exceção do Roberto Santos, nosso herói naquele momento, nos colocava (aos alunos) no terreno distante do Cinema Novo. Houve uma experiência curiosa de cinefilia: visitar os estúdios da Vera Cruz onde Khouri filmava o seu episódio de As cariocas. Este lado cinéfilo foi sempre, no meu caso, suplantado pelo fato de que tal aproximação estava articulada ao interesse pela política. Dentro do movimento estudantil, ainda em 1966, atuei bastante na área cultural do centro acadêmico da Politécnica-USP e cheguei a organizar, com um amigo da faculdade de direito, o Fernando Albino, um ciclo sobre cinema brasileiro então contemporâneo (que envolvia, Khouri, Anselmo Duarte, o Cinema Novo), ocasião especial para conhecer alguns críticos de cinema de São Paulo: Rogério Sganzerla, Paulo Ramos, Maurice Capovilla. O Trevisan ajudou na composição do ciclo; ele trabalhava na Cinemateca, sendo muito ligado ao Jean-Claude Bernardet, o que fez o ciclo ter um viés de valorização do filme do Person, São Paulo S/A. Neste momento, houve também o encontro com Gustavo Dahl que passava por São Paulo no dia da exibição de Barravento, e topou fazer a apresentação. O diálogo com cineastas e líderes da MPB era fácil e as coisas eram resolvidas sem maiores formalidades, inclusive para shows de música na Universidade, onde também tive uma experiência que foi decisiva, me colocando em contato com Chico Buarque, Geraldo Vandré e Gilberto Gil. Em 1967, a ECA se inaugura; faço parte da primeira turma. Começamos com Rudá de Andrade e Jean-Claude, depois Paulo Emilio, Roberto Santos e Maurice Capovilla. Jean-Claude e Paulo Emílio foram os interlocutores-chave no binômio 67-68, antes da cassação de Jean-Claude depois do Ato nº 5. De qualquer forma, continuamos em contato pois, entre outras atividades, havia um grupo de estudantes que passou a fazer crítica de cinema no Diário de São Paulo, entre julho de 68 e junho de 70, grupo de que eu era o coordenador, conforme decisão de Paulo Emilio, Jean-Claude e Rudá. Maria Rita Galvão passou a dar aulas na ECA mais tarde, não tendo um contato sistemático com a minha turma, mas já compondo, para mim, o grupo central de diálogo. Formado na ECA, entro para o Mestrado na Letras, na área de Teoria Literária, em 1971, com a orientação de Paulo Emilio, num diálogo que começa a sua fase mais rica para mim. Conheço, por outro lado, Antonio Cândido; seus cursos compõem até hoje a maior referência para o meu trabalho de análise. Este é um período decisivo de formação. Como orientando do Paulo Emilio, eu participava de uma reunião periódica na casa dele, em que discutíamos os projetos de pesquisa em história do cinema brasileiro, junto, entre outros, com Maria Rita, Jean-Claude e Carlos Roberto de Souza. Foi um momento em que a disponibilidade de tempo permitiu que eu seguisse o mestrado, preparasse a tese e seguisse cursos na filosofia, onde foi fundamental a amizade com Marilena Chauí. Ela foi decisiva, também, no descongelamento de meus referenciais teoricistas e quase positivistas, resultado da primeira profissão (professor de Física em cursinho), da formação estruturalista que tive na parte extra-cinema da ECA (muita linguística, antropologia estrutural e teoria da comunicação) e do "positivismo" althusseriano (fui dos que leu muito Althusser na época de movimento estudantil - e a noção de prática teórica, teve seu papel no meu trajeto entre 1968 e 1971, ano que Marilena entra em cena). Neste ítem "formação", digamos que, além do terremoto causado pelo binômio teoria literária-filosofia, próprio a este período 1971-75, outro momento importante foi o de New York, com destaque para o diálogo com Annette Michelson, na New York University, quando aprendi muito desta análise formal que faz parte do meu trabalho, e para o diálogo com Jay Leyda, no plano da pesquisa em história, quando participei do Projeto Griffith, em 1976-77 (o mesmo do qual participou João Luiz Vieira a partir de 1978). Esta foi uma experiência de ver nascendo a nova história de Tom Gunning, Charles Musser, André Gaudreault, Noel Burch (que passou pela NYU em 1976), entre outros.
Vocês têm razão quando lembram que, até aqui, o trabalho de historiador, no sentido de pesquisa em arquivo com levantamento original e sistematização de fontes primárias, não tem sido a tônica do meu trabalho. Mas houve circunstâncias em que tive este tipo de experiência, pela natureza do objeto estudado e pela ajuda de outras pessoas (primeiro Paulo Emílio, que foi o mestre fundamental ao longo de 7 anos, na aula, na orientação do mestrado, no seminário na casa dele, na Cinemateca). Alías, Paulo Emílio, com a sagacidade de sempre, percebeu, no início do mestrado, que não podia me transformar, de imediato, em um pesquisador do cinema brasileiro no sentido que tal palavra tinha em 1971 (recorte de tipo historiográfico, com ênfase à história da produção, com pouca análise dos filmes), e propôs que eu canalizasse meu claro interesse pelo debate ideológico-político e pela teoria na direção de um balanço histórico dos primórdios do pensamento cinematográfico. Daí surgiu o projeto França-Brasil, emergência da teoria lá e cá, influência dos franceses da vanguarda aqui, nos modernistas, e análise do pensamento mais avançado no Brasil: o do FAN, com destaque para Octavio de Faria e Plínio Sussekind Rocha. Paulo Emílio me passou tudo o que tinha sobre o Chaplin Club, e a Cinemateca abriu a coleção de Cinearte; na USP, pesquisei as revistas modernistas. Há algo aí de trabalho com fontes primárias numa iniciação à história da crítica cinematográfica. A generosidade de Alex Viany completou um primeiro quadro: ele me colocou nas mãos uma coleção de recortes e transcrições datilografadas de revistas como A tela e Palcos e Telas, um material que me ajudou a montar um capítulo do trabalho. O que não fiz de moto próprio foi uma pesquisa sistemática que poderia levar a um avanço na história da crítica feito a partir da pesquisa em periódicos (do tipo que Arthur Autran fez com Pedro Lima e que vocês* têm feito com Cinearte). Em 1975, quando eu estava em Nova York, o interesse pela formação da narrativa me levou à velha pergunta pela origem do cinema clássico. E Jay Leyda estava dando os seminários sobre Griffith. Sopa no mel. Aí pude ter o sentimento de revelação que se tem quando se abre um novo arquivo, pois vi junto com o pessoal de lá (o Charles Musser, em especial, pois íamos juntos à Biblioteca do Congresso para trabalhar, ele pesquisando Porter, eu Griffith) todos os filmes dos primeiros anos da carreira de Griffith. Ou seja, neste caso fiz trabalho de historiador, concentrado no exame filme a filme, do que resultou um artigo sobre a evolução da montagem no cinema de Griffith entre 1908 e 1909, seus primeiros cem filmes, artigo só publicado mais tarde na Itália, na Revista Griffithianna, de Gênova, num número especial organizado por Jay. Ainda em Nova York, montei o projeto de Tese sobre as alegorias no cinema brasileiro dos anos 60 (que terminou, em sua primeira versão, em 1982, quando completei o doutorado lá). A partir daí, concentrei-me no que mais interessa: trabalhar com cinema moderno, e me coloquei como tarefa desenvolver a análise de filmes, tipo de trabalho que não estava desenvolvido no Brasil (basta ver a bibliografia sobre cinema e o tipo de análise então existente, quando esta última ganhava relevo). O resultado disto é conhecido: as análises formais e o esforço de extrair o melhor de tal método de estudo imanente da imagem-som, o que foi um gesto deliberado de convite, de minha parte, para que se desse maior ênfase ao conhecimento detalhado dos filmes, para contrastar com o que eu achava um historicismo excessivo: acumulação de dados em torno dos filmes e pouco exame das obras.
Razão maior disto tudo: era preciso demonstrar o valor estético do cinema moderno brasileiro, e de Glauber em particular, o que só seria possível fazendo o que estudos mais sistemáticos não haviam feito: articular análise estilística e interpretação, mostrando qual cinema cada cineasta inventou e porque; ou melhor, com que implicações no plano do sentido e das relações entre cinema, política e história. Para tanto, procurei combinar a minha formação cultural e teórica obtida com os mestres da revista Clima - Paulo Emilio e Antonio Candido - com o choque de empirismo norte-americano que ainda deixa traços na minha preocupação em descrever (o que não é um ato inocente) e em chamar os exemplos que evidenciam uma "verdade teórica" apenas enunciada, o que, em termos de crítica, significa dizer onde, no detalhe do filme, se mostra como imagem e som "produzem" o sentido afirmado. O esforço foi então o de apurar a análise formal, pois é na forma que procuro encontrar os nexos entre cinema e sociedade, estética e política, incorporando, enfim, uma tradição que, no Brasil, passa por um crítico como Roberto Schwarz e, no contexto novayorquino, pelos que tinham sido alunos de Clement Greenberg, embora não sejam hoje seus repetidores (como é o caso de Annette Michelson que, com Rosalind Krauss, fundou, em 1976, a revista October). Acumular e examinar de forma sistemática a documentação em torno dos filmes ficou para segundo plano (mesmo porque isto era algo que outras pessoas estavam fazendo). Era preciso testar o alcance e os limites da análise imanente (o que podem dizer as imagens?) e evitar o que acho o pior: ver nos filmes apenas aquilo que os próprios cineastas dizem que está lá, ou apenas aquilo que o elenco de idéias que marcam um movimento estético definem a priori, confundindo intenções ou proclamações ideológicas com a dinâmica efetiva da linguagem, coisa que muita gente "escolada" ainda insiste em fazer.
Enfim, depois desta longa narrativa, devo responder que sim, não me pautei por seguir o caminho usual da pesquisa histórica, por todos os títulos fundamental e indispensável; mas digo também que não me afastei de todo da questão, pois os filmes são também fontes primárias por excelência se a meta é avaliar a força de uma proposta estética, a especificidade de uma experiência cultural e seu valor quando posta em cotejo com outras. Mesmo que o objetivo seja examinar o papel das idéais e a validade de uma postura crítica, há que se confrontá-las com o objeto que produzem ou que interpretam. Ou seja, tudo se empobrece quando se fala do cinema sem falar dos filmes. Não se pode resenhar conceitos dos grande autores e observar os filme tateando com uma bengala e fazendo ouvidos de mercador.
2. Obra
De SÉTIMA ARTE: UM CULTO MODERNO (Ed. Perspectiva), até o recente O CINEMA BRASILEIRO MODERNO, sua obra, majoritariamente dedicada ao cinema brasileiro, tornou-se uma referência para os estudos cinematográficos do país. Você faria hoje alguma reavaliação, alguma revisão crítica de alguma de suas obras, no sentido de reconhecer em algum momento que tenha assumido uma perspectiva teórica ou crítica que hoje não lhe pareça mais "sustentável"?
RESPOSTA
Em termos de estrutura, o livro que me incomoda é o Sétima Arte. E explicar porque é já uma forma de engatar na resposta anterior. Paulo Emilio me deu uma sugestão que, em verdade, para melhor entendedor, deveria me levar a uma concentração do trabalho no pensamento brasileiro. Mas eu ainda estava ligado demais na questão de "origem da teoria do cinema" e não abri mão de Canudo, Epstein e outros como objetos de um estudo com validade própria. A divisão do livro em duas partes - primeiro a teoria na França, depois a análise de três contextos de crítica e teoria no Brasil - espelha a história do trabalho que começou como uma exposição didática de noções, algo que era mais adequado ao exame da teoria francesa. Esta era menos acessível na época e não havia estudos sistemáticos mesmo na França, o que favorecia, num mestrado, a apresentação de conjunto, sem detalhamentos da história de algumas noções e sua relação com a produção cinematográfica. Tal insistência definiu um padrão para o trabalho que hoje não me parece a melhor opção para a apresentação do pensamento cinematográfico brasileiro. Talvez o melhor teria sido eu me concentrar na pesquisa histórica e fazer com que a lógica do trabalho saísse do corpo a corpo com a crítica brasileira, de modo a só me referir, na exposição, ao contexto francês quando fosse necessário explicar alguma noção vinda de lá. Para a minha formação, isto teria alcançado maior rendimento, pois teria aprofundado melhor minha relação com o contexto brasileiro no período.
Quanto a O Discurso Cinematográfico, claro que o ponto de vista organizador seria outro agora. A questão da desconstrução não teria tanto espaço, e também haveria mais pormenores no aspecto pedagógico (o livro é às vezes difícil para o iniciante). Algumas frases são por demais simplificadoras (como a sobre o documentário - ver questão 11 - e sobre a questão do real e da ideologia.). O que me "salvou" no envolvimento com os exageros da época foi meu "estilo indireto livre". Este permite assumir as vozes do tempo no meu próprio texto, sem, no entanto, assumir as afirmações como verdade inconteste - vide as reticências quanto ao desconstrucionismo, e o que ainda considero minha forma equilibrada, com as nuances do estilo indireto, de expor formulações bem datadas.
Quanto aos livros de análise do cinema moderno, a forma como foram lidos me ensina o quanto eu deveria ter sido mais didático nas introduções. Como eu estava desconfiado de resenhas teóricas e julgava que o próprio movimento das análises seria autoexplicativo, eu disse pouco sobre o meu "método" ou mesmo sobre as premissas. É enorme o número de teses que se estendem em introduções que são meras resenhas de teorias e depois praticam uma análise do objeto que pouco tem ver com a introdução. Certo colonialismo teórico e certo academismo estéril têm produzido, às vezes, teses de pouca valia justamente por isto. Às vezes, é mais fácil para o jovem pesquisador se "segurar" na resenha teórica do que efetivamente dizer algo de original e pertinente sobre os filmes. No pior dos casos, a introdução e o uso de conceitos de prestígio funcionam como pura maquiagem que encobre a anemia do crítico. Em contraposição a isto, fui lacônico e perdi a oportunidade de me antecipar a objeções tolas que às vezes aparecem, ou mesmo a mal entendidos bem intencionados. Na introdução do Sertão mar, eu deveria ter sido mais incisivo na discussão do que é análise imanente, do que é narrador no cinema e na literatura, do que é estilo indireto livre, e de quais são, afinal, as implicações do uso que faço da alegoria como categoria de interpretação. No Alegorias do subdesenvolvimento, eu poderia ter incluído o meu texto "Alegoria, modernidade, nacionalismo" que foi escrito em 1984 e publicado numa separata da FUNARTE pelo Adauto Novaes; esse texto explica de forma didática o que a introdução do livro apenas resume. Mas eu estava envolvido em outras discussões sobre as relações do cinema com a cultura no Brasil. Hoje, estou convencido de que, às vezes, vale a pena explicitar as "questões de método", mesmo que isto adie um pouco o contato com o objeto. O mesmo vale para certas categorias que são comuns na referência a Glauber, como o barroco. Vejam como fui discreto na referência a Benjamin na análise de Terra em Transe, coisa que eu deveria ter acentuado porque era uma forma de deixar mais claro porque só falei em barroco quando estava em pauta a idéia do "drama barroco", com todas as implicações políticas de tal noção.
3. O Discurso cinematográfico e A experiência do cinema, hoje.
Vinte e cinco anos depois da primeira edição, como você revê "O Discurso Cinematográfico", que é, achamos que sem contestação, a primeira obra de autor brasileiro sobre teoria cinematográfica, num sentido rigoroso, o que nos leva não a excluir, mas relativizar o alcance de alguns predecessores no âmbito da produção de conceitos em cinema? Em que direção caminharam as "estéticas cinematográficas"? Como você vê a aceitação, a inserção deste livro nos estudos cinematográficos desde então? Em relação à antologia A EXPERIÊNCIA DO CINEMA, se você fosse convidado para organizar uma nova edição, que outros textos a comporiam e por quê? Você manteria a mesma estrutura ou faria algumas (ou muitas) modificações? Qual seria a linha condutora de um novo "posfácio" a O DISCURSO CINEMATOGRÁFICO?
RESPOSTA:
Como observei, O discurso cinematográfico está muito pautado pelo debate da época em torno do estatuto ideológico do cinema "em geral" - do "dispositivo", como dizia Baudry, ou "apparatus" como traduziu a teoria anglo-americana. Como era importante a relação entre cinema e política, e como era importante a especificidade da análise estética, eu me alinhei "grosso modo", e evitando o que achava excessos, com a forma muito peculiar com que o descontrucionismo foi incorporado à crítica cinematográfica (visto pela esquerda que pensava, não em Derrida, mas em Brecht e na afirmação de sentidos, não apenas nas operações de suspensão do sentido). Resultou o privilégio à oposição entre opacidade e transparência, onde o primeiro termo tinha mais valor do que o segundo. O mérito do livro foi adotar um critério claro para colocar uma ordem e uma hierarquia nas teorias apresentadas, tanto mais valorizadas quanto mais contribuíssem para a concepção de cinemas alternativos ao cinema clássico industrial (alvo maior da crítica). O livro foi escrito em Nova York, sob o impacto da descoberta do que era afinal o cinema underground e sua riqueza, e do que eram as idéias que o alimentavam dentro da tradição modernista, o que permitia ampliar o horizonte de quem tinha uma formação "européia" (acabei sendo um dos primeiros a ir para os Estados Unidos e ampliar nossas referências). O livro foi escrito com uma tônica de resenha própria ao gênero (o que às vezes resulta esquemático), mas o decisivo era ter um ponto de vista contemporâneo para colocar as teorias em perspectiva, lado mais vivo do livro, pois se definiu uma lógica no panorama traçado e se deixou nítida a minha posição em favor de experiências do cinema moderno, com eleição de Godard como paradigma maior. Mas falta, de qualquer modo, nuance em certas passagens. O cinema clássico é mais complicado. Não discuti a questão dos gêneros. E o que falei sobre o documentário é genérico demais, com algumas reduções (ver questão 12).
Rever? Voltando lá atrás, eu teria melhor explicado as categorias descritivas usadas por todos nós quando falamos dos filmes (os termos da dita "linguagem cinematográfica"), para tornar mais acessível a discussão estética que domina o livro. Falando a partir de 2002, é impossível imaginar uma empreitada semelhante. Os focos de teoria se multiplicaram, e também as problemáticas, ou seja, o conjunto de problemas que cada teoria formula e procura resolver. Diante do múltiplo atual, eu seria obrigado a uma escolha do problema a ser trazido ao centro. Precisaria pensar mais. No entanto, tenho certeza de que acentuaria a importância da história no debate, falaria mais desta incidência das novas pesquisas sobre a formulação de conceitos, e também da incidência dos problemas que os novos filmes suscitam. Não teria hoje UM ponto de vista teórico, pois as reflexões existentes estão tentando discutir problemas diferentes.
Quanto ao pósfácio possível, em termos práticos, já enfrento a questão. O Fernando Gasparian (Paz e Terra) quer republicar o livro desde que atualizado, ou seja, algo como um capítulo a mais para dizer o que houve depois. Não dá. Seria o desequilíbrio total, pois os últimos 25 anos não seriam apenas mais um capítulo. Há novos conceitos e nova configuração, o que exige uma nova forma de organizar a exposição. Vocês mesmos trazem à conversa os novos influxos na filosofia do cinema (Deleuze na França, a filosofia analítica e os discípulos de Wittgenstein nos Estados Unidos, Fredric Jameson e sua análise marxista do contemporâneo) e a nova teoria do documentário. E há o debate entre a estética e a sociologia da cultura, debate renovado agora com a consolidação do "cultural studies" no mundo anglo-americano e sua rejeição no mundo francês. Ênfase deveria ser dada aos estudos de recepção, onde se pode inserir a intervenção dos cognitivistas em seu debate com a psicanálise. Hoje estou mais atento às questões da retórica da imagem (em função, claro, de minha lida com a alegoria) e a outras formulações do problema, como a teoria do "figural" de Philippe Dubois. E também estou mais atento à teoria dos gêneros (seja no sentido clássico - lírica, épica, dramática -, seja no sentido das classificações da indústria). Muito do que tenho feito procura explorar as relações de afinidade entre melodrama e cultura visual moderna; tenho reiterado a idéia de que as relações entre o espetáculo e as matrizes melodramáticas é mais profunda do que se reconhece. O que repercute na avaliação crítica do cinema clássico.
Nos anos 70, a minha caracterização deste cinema não é incorreta, mas é sumária. Não dá conta de muitos problemas que agora ganham maior nitidez: o papel das "atrações" (Tom Gunning) dentro dele, as tensões entre o narrativo e o visual, a estrutura e função da trilha sonora. As estratégias do moderno foram incorporadas ao cinema corrente, e a retórica da imagem se alterou num contexto que inclui novos gêneros e tende a potencializar efeitos de um mundo de artifícios assumido como tal. O cinema industrial mobilizou a alta tecnologia para o adensamento dos efeitos especiais que colocam a força da imagem numa esfera autônoma. Um enorme narcisismo (o mesmo de que se acusava a vanguarda) faz da técnica o espetáculo, tornando mais complicada a questão da transparência, embora esta permaneça, uma vez que as regras de continuidade (e motivação) continuam valendo, assim como os paradigmas extraídos da mitologia. O fetichismo se torna um conceito mais decisivo na discussão da imagem e do som hoje.
Quanto a A experiência do cinema, não pensei em uma nova edição, se entendida como atualização. O livro tem sua função e continuará tendo como está, sem tudo o que veio depois de 1983. Fazer outra antologia agora não está nos meus projetos, pois estou com a agenda saturada. A escolha de textos leva tempo, mesmo quando você sabe que tendências devem estar representadas. E existe a questão de não repetir o que já está encaminhado de forma aceitável em outras antologias. Não tive tempo, por exemplo, de examinar com cuidado a antologia organizada pelo Robert Stam e o Toby Miller citada por vocês: ela é admirável, num exame preliminar, pela abrangência e pela pedagogia. Há uma outra antologia deles também editada pela Blackwell - A Companion to Film Theory - que inclui um texto meu sobre alegoria e história no cinema. Esta eu conheço melhor. Mas não sei se é o caso de traduzir. Este jogo de antologias é interminável. Mesmo no caso da publicação em 1983, tive frustrações. Por exemplo, eu planejara ter os textos da Communications nº 23 (1975), mas houve outra edição em português que atropelou a minha. Gostaria de ter dado mais espaço para a definição, dentro de diferentes perspectivas, do cinema moderno (algo de Burch cujo livro saiu depois pela Perspectiva, o texto de Pasolini sobre o cinema de poesia).
Para terminar, devo dizer que a coleção da Cosac & Naify - Cinema, teatro e modernidade - expressa o recorte que me interessa fazer agora, mais voltado para as implicações teóricas da pesquisa dos historiadores e dos estetas, como Jacques Aumont, que pensam o cinema em relação a outras artes. A premissa maior, neste sentido, viria da constatação - comum a franceses e anglo-americanos - de que a Grande Teoria do cinema está em crise como campo unificado de questões. Vejam o número da revista da Marie-Claire Ropars-Wuillemier, do Pierre Sorlin e da Michèle Lagny, Hors Cadre - o nº 6, se não me engano - do final dos anos 80, sobre a crise da teoria. E o que tem pautado as explorações de Bellour no terreno da "entre-imagem", as explorações de Philippe Dubois na questão da figura, e o movimento em direção a uma revisão da estética - em que se insere a questão do cinema - feito por Jacques Aumont. Nos Estados Unidos, há a antologia Post-Theory dos cognitivistas, supondo enterrada (ou desejando enterrar) a teoria do "dispositivo", esta apoiada na psicanálise, como o último grande esforço (frustrado) de unificação teórica depois das tentativas dos estruturalistas.
4. Som
A antologia A EXPERIÊNCIA DO CINEMA fecha com um texto sobre o som: o de Mary Ann Doane, A voz do cinema: a articulação de corpo e espaço. Os anos seguintes à edição de A EXPERIÊNCIA DO CINEMA trouxeram um espaço maior para a discussão sobre o som no cinema, que perpassou a década de 1980 e adentrou os 1990. De um lado do Atlântico, houve o grande empreendimento de Michel Chion, com os vários volumes dedicados exclusivamente ao estudo do som nos filmes; do outro, o esforço compilatório de pesquisadores americanos, cenário em que se destaca Rick Altman, que tem obra significativa quanto a uma revisão do advento do som no cinema, bem como à desconstrução dos pressupostos através dos quais o som foi relegado a um papel secundário que se cristalizou enquanto os campos da teoria e da análise fílmicas se consolidavam. A se fazer uma compilação que compreendesse os anos posteriores ao fechamento da edição original, tal corpo teórico, que trouxe à tona a discussão sobre o som, teria espaço? Ou seja, teria, na sua opinião, relevância suficiente para tanto?
RESPOSTA:
A questão do som no cinema foi, durante muito tempo, o ponto cego da teoria. Nos anos 80, tivemos o grande salto na sistematização e nas pesquisas históricas: Michel Chion e Rick Altman, nos aspectos mais gerais, como vocês bem lembram, e uma quantidade grande de estudos sobre a música no cinema clássico e sobre a as relações entre voz e imagem a partir das questões postas pela narrativa (voz over) no filme noir e por certas experiências do cinema moderno francês (Tati, Godard, Duras, Resnais, Robbe-Grillet). Chion mesmo trabalhou muito bem a questão da voz desde Fritz Lang, cunhando a noção de "acousmatique", para se referir ao som da voz que não tem corpo e leva a todo tipo de interrogação quanto ao seu lugar de emissão. Aliás, esta questão do elemento que procura o "seu lugar" é central para a teoria de Chion a propósito do som no cinema, pois ele descarta a idéia de "banda sonora" como um espaço coerente, com lógica e estrutura próprias, que daria "abrigo" e sentido aos elementos sonoros presentes num filme. As observações de Chion sobre as relações entre o espetáculo cinematográfico e o teatro, ou a ópera, devem ser mais exploradas, bem como tudo o que a teoria do melodrama, mais desenvolvida na Inglaterra e nos Estados Unidos, tem lembrado na ênfase que dá a estas mesmas afinidades que aproximam o cinema narrativo-dramático da tradição do palco.
Claro que isto ajuda, e deve ser estudado com maior rigor. Mas, afora as classificações, é nítido, em termos estéticos, que os cineastas estejam à frente na proposição de questões interessantes, e isto desde Eisenstein com a sua noção de "montagem vertical", inspiradora de muita coisa, mesmo que o pessoal de música tenha restrições a uma das formas do "vertical" - o contraponto sonoro. Em verdade, a questão da música no cinema - seja enquanto presença sonora efetiva, seja enquanto metáfora estrutural - inibe a maioria dos críticos, pois a música exige competência específica para a análise (e o lado técnico dos trabalhos sobre Bernard Herrmann, como o de Graham Bruce, e sobre outros compositores confirma isto). Como, por esta via, há limites claros, cada um procura explorar o caminho mais ajustado à sua formação. Eu, por exemplo, me concentro na questão da voz e seu papel na narrativa em função da teoria literária, o que acabou marcando minhas análises de filmes desde os tempos da lida com o cinema de Glauber no Sertão Mar. Curiosamente, só sistematizei melhor, em termos teóricos, o que já estava presente "em estado prático" no meu texto sobre Deus e o Diabo, quando fiz meu texto sobre o São Bernardo ["O olhar e a voz: a narração multifocal no cinema e a cifra da história em São Bernardo", publicado na revista Literatura e Sociedade nº 2, 1996]. Só aí - e também no texto "Parábolas cristãs no século da imagem" [revista Imagens nº 5, 1995] - ficou explícito o problema da narração multi-focal no cinema (ponto de vista da câmera, mise-en-scène, vozes, música, etc...) e o que se pode derivar daí na análise da diferença entre o cinema clássico e o moderno. Enfim, este é um terreno muito rico e pouco estudado, que pede maior empenho de todos nós que nos inserimos numa cultura em que a música popular ocupa um lugar central e tem uma interação forte com o cinema, sem contar a importância das adaptações literárias em que vem a primeiro plano a questão do narrador e da voz-over.
5. Antologias
Ultimamente, muitas antologias de teoria do cinema têm aparecido no mercado editorial internacional. Quais as que você destacaria como as mais importantes para o campo dos estudos cinematográficos? (Robert Stam, por exemplo).
RESPOSTA:
Claro que vou esquecer muita coisa. De qualquer modo, além das duas antologias de Robert Stam e Toby Miller, que ainda pensam o problema da reflexão sobre o cinema em geral numa perspectiva pedagógica, com um apanhado capaz de sugerir uma história das teorias, há antologias que afirmam uma perspectiva de trabalho bem definida, como o Post-Theory: Reconstructing Film Studies, organizado por David Bordwell e Noel Carroll [University of Wisconsin Press, 1996], livro de defesa dos pressupostos cognitivistas. A tônica agora é esta, ou seja, a antologia que afirma um programa de trabalho ou um recorte temático, ou um problema, sempre com intersecções entre os campos: cinema e filosofia, cinema e história, cinema e novas tecnologias, cinema e teoria dos gêneros dramáticos, cinema e feminismo, cinema e pintura, cinema e teatro, ou cinema e melodrama. Inspirados em Walter Benjamin e Georg Simmel, Vanessa Schwartz e Leo Charney organizaram a excelente antologia, O cinema e a invenção da vida moderna, que inaugurou a coleção que dirijo para a Editora Cosac & Naify. Num movimento paralelo ao de Schwartz e Charney, Dudley Andrew organizou The Image in Dispute: Art and Cinema in the Age of Photography [University of Texas Press, 1997]. Há uma imensidade editorial em torno do "cultural studies" e do multiculturalismo; neste caso, o melhor é começar pelo livro do Robert Stam e da Ella Shohat, Unthinking Eurocentrism; Multiculturalism and the Media [Routledge, 1994]. Thomas Elsaesser tem uma excelente síntese da questão do cinema no início do século: Space, Frame, Narrative [BFI, 1990]. Sobre os gêneros da indústria, há a antologia de Nick Browne: Refiguring American Film Genres: Theory and History [University of California Press, 1998]. No plano da reflexão estética mais adensada, Jacques Aumont organizou, a partir de seminários da Cinemateca Francesa, uma série de excelentes antologias concentradas em diferentes temas, todas publicadas pela própria Cinemateca (destaco a que se concentra em Jean Epstein, a que tematiza "a invenção da figura humana no cinema", e a que discute a noção de "mise-en-scène" - esta última, aliás, publicada no ano passado na coleção organizada pelo Philippe Dubois para uma editora belga, a De Boeck Université). Para terminar, aí vão referências no campo das relações entre cinema e história: The Historical Film: History and Memory in Media [org. Marcia Landy, Rutgers University Press, 2000], De l'histoire au cinéma [org. Antoine de Baecque e Christian Delage, Éditions Complexe, 1998], The Persistence of History: Cinema, Television and the Modern Event [org. Vivian Sobchack, Routledge, 1996] e Revisioning History: Film and the Construction of a New Past [org. Robert Rosenstone, Princeton University Press, 1995].
6. Teoria, Crítica e História do Cinema no Brasil
Como você vê, dos anos 1970 para cá, a inserção da experiência do cinema como pauta para os estudos acadêmicos no Brasil? Quais foram os "becos sem saída", "as encruzilhadas" e os "novos caminhos"? Qual é a herança de uma crítica estética participante, política, nos estudos de cinema?
RESPOSTA:
Esta inserção ajudou a desenvolver o que exige trabalhos mais sistemáticos de pesquisa, como os voltados para a história do inema brasileiro, embora não na intensidade que se esperava há 20 anos. Acho que tais estudos estão menos representados no espectro acadêmico hoje do que deveriam, havendo maior concentração deles no eixo Rio-São Paulo, onde estão também as duas cinematecas e os principais arquivos (como o da Cinédia, como vocês sabem). Outra conseqüência da consolidação dos estudos acadêmicos na área foi a maior circulação de teorias, mais propriamente do que o debate teórico, pois as diferentes opções coexistem havendo pouquíssimas ocasiões para um cotejo no bom sentido do termo. Como o cardápio é hoje vasto, temos incorporado a produção internacional com certa rapidez, dentro da mesma tônica já antiga dos estudos literários, não sendo raro encontrar a ansiedade em demonstrar atualização no plano dos conceitos acoplada a uma falta de consistência na relação com os objetos (filmes, autores, movimentos estéticos), às vezes revelando constrangedor alheamento face à tradição crítica voltada para o cinema brasileiro (ou mesmo da tradição crítica voltada para outras cinematografias quando são essas que estão em pauta). Tal inconsistência se reflete às vezes na escolha do objeto, às vezes no modo de tratá-lo. E, como resultado mais amplo e geral, se reflete na dispersão de esforços. Não digo isto pensando diretamente no fato de que, na pós-graduação, há uma tendência a se "atirar para todos os lados", como se diz, com a maioria dos professores funcionando como receptores de projetos definidos pelos alunos ingressantes, coisa que tem o seu lado ruim, mas também tem o seu lado bom (a maior liberdade, a rentabilização de paixões pessoais por determinado autor ou tema), restando analisar caso a caso. Estou pensando mais na volubilidade que nos é própria, e que leva a mudanças de rumo encorajadas pela moda, sem que se tenha explorado até o fim determinada linha de trabalho e sem dar a chance para que os problemas a serem formulados surjam do próprio percurso da reflexão na sua interação com os objetos. Em verdade, estou repondo a questão colocada pelo Roberto Schwarz no caso das letras, quando vemos a atualização teórica, ao invés de articulada à problemática em pauta numa pesquisa, se reduzir a mero mimetismo face ao contexto de produção teórica tomado como modelo. Os "becos sem saída" estão nos casos extremos desta pulverização de temas e linhas de trabalho, quando a proposta perde o senso de proporção e relevância. Os caminhos, ao contrário, se abrem quando não voltamos as costas para o solo histórico e para o lugar de onde estamos falando, e mantemos o sentido da intervenção que encontra seus interlocutores e responde a questões postas pela experiência do cinema e da cultura em nosso contexto, o que se dá não apenas a partir da eleição de objetos locais (isto não garante nada), mas fundamentalmente a partir da formação de um ponto de vista local sobre qualquer tema (por exemplo, globalização e novas tecnologias são fenômenos universais, mas vividos em cada canto do mundo de uma maneira específica). O que interessa, portanto, é a formulação de uma problemática que responde a inquietações e impasses que estão à nossa volta e que nos atingem, qualquer que seja o assunto da pesquisa.
7. Foucault, Benjamin, lingüística: aproximações e distanciamentos
Como você vê a aproximação da história do cinema com os métodos do "historiador" francês Michel Foucault? De forma direta: qual é a atualidade dos estudos de Walter Benjamin para o campo cinematográfico? Quais as implicações, nos estudos do cinema, da lingüística e da teoria da literatura (e mais recentemente, da chamada "análise do discurso"), oriundas das formulações de Mikhail Bakhtin, Austin, Oswald Ducrot, Gerard Genette, Christian Metz, Jacques Derrida?
RESPOSTA:
O que melhor resultou da influência de Foucault foram os estudos do século XIX sobre fotografia e pintura, sobre os aparelhos óticos, sobre os hábitos da sociedade e medidas disciplinares ou de controle (incluídas aí práticas policiais), trabalhos que tiveram a sua incidência na reflexão sobre cinema. Claro que penso em Jonathan Crary e sua investigação sobre o sentido da visão e as concepções do olhar, e também em John Tagg [The burden of Representation: Essays on Photographies and Histories. University of Minnesota Press, 1988], e no próprio Tom Gunning e outros teóricos e historiadores que compõem a antologia traduzida na coleção da Cosac & Naify. Antes disto, houve a presença tênue de Foucault em livros sobre os gêneros da indústria, e livros sobre a inscrição do corpo na cultura, onde se destaca alguém como Richard Dyer (que já tinha pensado bem a questão dos gêneros da indústria numa perspectiva de estudo institucional, de "formações discursivas", sem obrigatoriamente usar o vocabulário foucaultiano). Esta questão do corpo e as formas de representá-lo e inscrevê-lo em redes discursivas tem tido ressonância no Brasil, como em um número significativo de trabalhos apresentados na Socine, inclusive o que se fez em função do contato do João Luiz Vieira com Richard Dyer. A incidência maior de Foucault tem sido nas reflexões sobre a questão dos códigos e dos controles que, em geral, envolvem a esfera da mídia e as teorias de subculturas de classe, de etnia, de gênero (masculino/feminino/plural) ou de tribos urbanas, quando muitas vezes os trabalhos se afastam da dimensão estética dos problemas (não por acaso, Foucault hoje tem substituído Gramsci como referência na esfera do Cultural Studies). Mas há um outro pólo de sua influência na discussão da crise do sujeito e da noção de Autor (o tema da morte do autor), onde se dá ênfase à primazia dos sistemas, ou das formações discursivas, e à centralidade dos códigos como a língua. Estas linhas de trabalho têm interesse, mas há o risco de se reduzir todos os processos à esfera do discurso enquanto sistema (ordem, regras), dissolvendo-se a questão da passagem de uma ordem à outra, e aspectos essenciais da interação entre linguagem e mundo. Nem tudo se reduz a uma poética (ou uma retórica), ou à atenção concentrada na elucidação das regras intrínsecas dos gêneros de discurso (ou da codificação do olhar). É preciso conectar a questão das regras e dos discursos com a análise das forças que direcionam o mundo prático, os interesses de classe ou de grupos de outra ordem; enfim, a lógica da vida material e as transformações que o mundo da produção engendra. Porque articulou Foucault a outras indagações sobre o solo social e histórico, Jonathan Crary foi mais fundo nas questões e obteve a ressonância que conhecemos. De minha parte, aprendi mais com o Foucault de As palavras e as coisas, pois meu estudo da alegoria muito se valeu de suas formulações no plano das diferenças entre o mundo renascentista das semelhanças e a noção clássica de representação. Mas meu horizonte foi o de articular o que encontrei em seu livro com o quadro teórico de Walter Benjamin, no qual a questão da alegoria e suas tensões insolúveis - sua dialética de fragmentação e totalização - estão pensadas a partir de uma outra visada da história em que cada momento é pensado como drama, imperativo de violência e contradição viva, insolúvel, entre construção e destruição, civilização e barbárie, melhoria e catástrofe, desde que tudo permaneça como está no terreno da divisão social e do confronto dos interesses nacionais (centro e periferia). É esta crítica à noção de progresso e de continuidade histórica que acredito ser mais produtiva como moldura geral de um trabalho no campo das relações entre cinema e história. Muitos trabalhos incorporam mais a forma como Benjamin historiciza a percepção, a sensibilidade e as categorias estéticas, ou se concentram na sua teoria da modernidade feita a partir do estudo de Baudelaire, como acontece com os autores presentes no livro O cinema e a invenção da modernidade. No entanto, Miriam Hansen, dentro deste mesmo livro, nos lembra que é necessário cautela em tal transplante de configurações do capitalismo do século XIX para a sociedade de massas do século XX, onde enfim estamos. Há uma exploração interessante a fazer inspirada em Miriam Hansen, para além da repetição e extrapolação mecânica do que Benjamin disse sobre a urbanidade, a aura, a arte na era da reprodução. Enfim, historicizar de novo.
Acho que não precisamos voltar aqui à avaliação do legado da linguística (e da semiologia de Metz) em nosso terreno, com seu viés narratológico e mais competente na análise do cinema clássico. A crítica de seus modelos veio por vários lados: os cognitivistas (que também têm dificuldade de falar sobre algo que escapa ao narrativo e seu sistema de inferências) e deleuzianos detonaram a "enunciação", por motivos diferentes. Mas Deleuze conservou alguma coisa deste legado, notadamente quando incorpora a noção de estilo indireto livre, com toda a transformação que faz desta noção a partir das formulações de Bakhtin e Pasolini. Tal noção supõe a confluência de "vozes" e operadores textuais como o narrador, mesmo quando se descarta a psicologia e a tendência à subjetivação que a noção revela em sua tradição vinda da teoria literária. Enfim, já entrando na pergunta sobre Deleuze, a caracterização do cinema moderno teve aí um ponto forte que persiste e não pode prescindir desta tradição da teoria da narrativa para um entendimento do problema quando pensamos os últimos 40 anos de cinema.
8. Deleuze, o cinema e o olhar contemporâneo
É indiscutível a influência e a presença da obra do filósofo francês Gilles Deleuze nos estudos cinematográficos brasileiros contemporâneos. Ausente, por exemplo, da antologia A EXPERIÊNCIA, hoje os estudos cinematográficos de inspiração deleuziana adquiriram uma expressão que poderíamos dizer tão grande quanto aqueles de inspiração freudiana e lacaniana (com naturais intersecções entre ambas). Como você avalia o impacto dos textos deleuzianos especificamente cinematográficas IMAGEM-TEMPO e IMAGEM-MOVIMENTO - nos estudos cinematográficos e, por ampliação, dos conceitos mais "filosóficos" de Deleuze e como vê a sua aplicabilidade na análise fílmica, por exemplo?
RESPOSTA:
Ele ficou fora da antologia porque esta saiu no mesmo ano de A Imagem-movimento, que é de 1983, não sendo ainda referência naquele momento. Seria um item imperativo em novas antologias. O impacto realmente é enorme. Deleuze recolocou o tempo na pauta da teoria do cinema, e inseriu o cinema no campo onde se produz o pensamento do século, construindo uma teoria abrangente em seu escopo - trata-se, quando menos se esperava, de uma nova ontologia do cinema - e bem calibrada em sua estratégia de defesa do cinema moderno como o ponto decisivo onde pensamento, imagem e tempo encontram sua substância (desculpem o termo) comum. Recolocar o tempo significa descartar a base linguística, a álgebra do estruturalismo, e voltar à dinâmica, à intensidade, ao acontecimento. Avaliar tudo isto? Não é propriamente o que posso fazer, se o que se quer é uma reflexão sobre a sua filosofia e os conceitos que inventa. Mas é possível comentar algumas das implicações deste pensamento no plano da crítica, e também algumas formas deste pensamento se apropriar da crítica, notadamente aquela que, em conexão com a Nouvelle Vague, construiu o referencial dominante na concepção que temos do cinema moderno. Sim, porque se, de um lado, Deleuze re-trabalha, da forma que lhe é peculiar, os conceitos de Bergson, faz o mesmo com um enorme corpo de textos escritos sobre cinema, principalmente na França, de modo que o leitor vai reconhecendo aqui e ali os pontos de origem, nem sempre nomeados, e também as diferenças que se introduzem quando o filósofo inscreve idéias e noções em seu estilo de pensar. O essencial é que seu pensamento legitima o moderno, chega a compor um movimento da história do cinema em que os avanços da prática se conectam a uma definição dos conceitos chave: imagem-movimento, imagem-tempo, imagem-cristal. Com isto, o leitor vê confirmada uma forma particular, europeizante e tipicamente "pós-guerra", de entender a história do cinema. Cabe então perguntar: noções como imagem-movimento e imagem-tempo não estariam limitadas por recortes cronológicos à revelia do que o próprio Deleuze pensa sobre a história? Por que é necessário fazer uma leitura do cinema mudo, inclusive das experiências de vanguarda, no interior do que é subsumido à imagem-movimento, como se fosse necessária sua precedência na história do cinema, face à imagem-tempo, que viria depois? O que significa este resíduo cronológico na exposição dos conceitos do filósofo? Não seria redutor este diagnóstico da "liquidez" do impressionismo francês, e não seria limitada sua análise das figurações do cinema de Eisenstein inscritas no campo da imagem-movimento? O que significa este jogo de inversões especulares que faz com que um filósofo, cujas afinidades eletivas conduzem a Nietzsche, privilegie uma galeria de autores muito similar à galeria celebrada pela crítica francesa cristã do pós-guerra e seus derivados?
Algumas destas questões já foram postas por quem se debruçou mais decisivamente sobre os textos de Deleuze, como é o caso de André Parente que, em Narrativa e modernidade [Papirus, 2000] questiona a forma como o filósofo francês (assim como outros autores) concebe a oposição entre o narrativo e não-narrativo no âmbito da imagem. Se a questão é Deleuze, outro percurso de análise do moderno e do pós-moderno que o toma como interlocução central está no livro de Peter Pál Pelbart, A vertigem por um fio: políticas da subjetividade contemporânea [Iluminuras, 2000]. Cito os casos em que há densidade. Na discussão de teoria, em particular quando a pergunta é pela repercussão de um pensamento consagrado, é preciso distinguir quem se insere na problemática deleuziana por opção, ou seja, quem conhece a história e a teoria do cinema, e faz sua escolha a partir de um repertório amplo, daqueles que simplesmente aderem ao que lhes parece "distintivo", no sentido de Pierre Bourdieu. Num período recente, o que me parece pouco produtivo são os lances de filosofia kitsch, a roupagem chique do pensamento trivial, muito próprios a quem escreve como se a reflexão sobre o cinema tivesse começado ontem. Não é raro ver pessoal desavisado cogitar, no que pensam ser exploratório e "de ponta", em supostos caminhos da crítica que, em verdade, já foram percorridos em análises concretas, seja do cinema moderno brasileiro, seja das formas de distinção entre o cinema clássico e o moderno, seja de um autor já arquiinterpretado. Do ponto de vista da crítica, há que se ter um senso de proporção, que muito depende de uma formação do gosto que se articula a conhecimentos históricos, para evitar a aplicação de um repertório conceitual que está em descompasso com a problemática presente no filme que se escolhe examinar. Lembro a piada do pessoal de Letras ao citar a irrelevância de teses do tipo: "A instância da letra no inconsciente, Lacan e as rimas no discurso poético de J.G. de Araújo Jorge". Às vezes, o filme é de pouca envergadura e não adianta forçar o debate estético com a aplicação mecânica de conceitos inventados para pensar questões muito mais complexas do que o objeto diante dos olhos. Isto se torna mais caricato quando o vôo filosofante é forma de elidir o solo sócio-histórico da obra (porque este nem sempre se conhece) e agir como se fossem menores as perguntas sobre a articulação de uma forma estética com o contexto sócio-político de onde emerge.
Indo em direção contrária, e para falar de um caso em que a envergadura das obras se ajusta à complexidade da discussão conceitual, vale a pena examinar a excelente tese de Francisco (Kaq) Saraiva, defendida na UNB, cuja análise de Limite, de Mário Peixoto, demonstra a erudição necessária para um comentário que retoma o problema da distinção, no concreto, entre imagem-movimento e imagem-tempo, analisando a temporalidade inscrita nas imagens do filme, questionando, assim, a suposta ausência da imagem-tempo na primeira vanguarda e seus interlocutores. E também o livro de Cláudio da Costa, Cinema Brasileiro (anos 60-70): dissimetria, oscilação e simulacro (Rio de Janeiro, & Letras, 2000), quando a mobilização dos conceitos é pertinente ao universo do cinema moderno que está em pauta, trazendo nova perspectiva de análise sem descuidar do diálogo com a fortuna crítica já construída em torno de Glauber e Bressane, por exemplo.
9. A Teoria Cognitivista do Cinema
Contando com os seus reparos devidos, poderíamos dizer que a década de 1990 (ou talvez a periodização devesse recuar a partir da segunda metade da década de 1980), vê aflorar uma geração de teóricos, historiadores, críticos e analistas que de certa forma deslocaram o foco central dos estudos cinematográficos da França dos estruturalistas lingüísticos para os Estados Unidos e a Inglaterra dos chamados cognitivistas (David Bordwell, Janet Staiger, Noel Carroll, Richard Arlen, Carl Plantinga etc.). Em que pese algumas obras que manifestam um certo contato com estes textos (praticamente inéditos em português), como você avalia a assimilação deste paradigma teórico e analítico em nosso meio? Nós faríamos a provocação de propor a existência de uma certa resistência a este corpo teórico pelos pesquisadores e teóricos locais, sem avançarmos em suas possíveis causas.
RESPOSTA
O cognitivismo na teoria do cinema surge no bojo de uma deliberada campanha contra a psicanálise e o que estava implicado na teoria do "dispositivo" de Baudry: passividade do espectador, regressão narcisista, vulnerabilidade à manipulação e associações "irracionais". Enfim, tudo o que desestabiliza o Sujeito soberano e as operações autônomas da Razão.
Foi violenta a polêmica, em torno de 1986, na revista October, entre Noel Carroll e Stephen Heath, a partir de um ataque de Noel ao esquema teórico da revista Screen, de tipo lacaniano. Em sua introdução ao Narration in the Fiction Film, Bordwell faz o balanço crítico dessas questões e propõe uma teoria da narrativa menos apoiada em modelos linguísticos e, em especial, na idéia de enunciação, chegando a seu modelo interativo entre filme e espectador, este último dispensando as hipóteses lacanianas sobre o sujeito e atuando na linha da racionalidade do senso comum da espécie: recolhe dados pelo equipamento sensível, formula hipóteses, as verifica e opera segundo um jogo de inferências de tipo binário, como um computador ao processar os dados. Claro que Bordwell não usa assim tal associação, sou eu (e Bill Nichols que, numa crítica à teoria da narrativa de Bordwell, conclui com esta ironia de que tudo funciona às mil maravilhas, desde que a luz saída da tela encontre um computador na platéia). Há um quê de caricatura nisto, mas foi o próprio Noel Carroll quem fez a associação numa conversa comigo lá pelos idos de 1977, quando me explicava a sua teoria da montagem (eu tenho um xerox do texto). Explicou, descreveu como o espectador receberia cada novo plano e formularia as hipóteses, verificaria, alteraria o pressuposto e voltaria ao mesmo procedimento até chegar à resposta satisfatória. Depois de certo tempo, se deu conta e me perguntou: isto soa como um computador? Eu disse sim. Ele sorriu.
Aceitando a provocação de vocês, posso dizer que sou um dos que resistem a este corpo teórico quando assumido em seu lado "contra a interpretação", e estou convencido de que o ensaio sobre cinema no Brasil tem, em curto prazo, caminhos mais interessantes a seguir, fora desta assepsia acadêmica à Bordwell. Mas partilho com eles o zelo pela descrição. E há jovens seguindo esta trilha e fazendo a crítica da tradição francesa de teoria do cinema, coisa que se vê na SOCINE que sempre nos traz uma amostra das preocupações dos vários grupos. Em verdade, sem perder de todo esta associação feita acima com o computador, a coisa é, sem dúvida, mais complicada e tem seu terreno de validade, desde que não radicalizemos esta eliminação da esfera do desejo, do inconsciente, da operação de esquemas ideológicos, enfim de tudo o que sabemos sobre a prática de leitura das imagens que não se reduz a estes algoritmos em estado puro, pois há o "ser em situação" e suas linhas privilegiadas de associações significantes que acredito pouco tem a ver com o que eles chamam de "inferências". Isto fica nítido no livro Blurred Boundaries: Questions of Meaning in Contemporary Culture, onde Bill Nichols tem um artigo extraordinário sobre o caso das imagens em vídeo do espancamento de Rodney King e sobre as leituras feitas por defesa e acusação no julgamento dos policiais envolvidos.
Em defesa dos cognitivistas, temos um bom exemplo do próprio Noel Carroll - um intelectual nitidamente de esquerda no período novayorquino (como Arthur Danto, seu maior inspirador e Annette Michelson, sua maior amiga e ex-orientadora) - que nos oferece um movimento interessante nesta interação entre imagens e cadeias de pensamento lógico em sua análise da `seqüência dos deuses' do filme Outubro, do Eisenstein (ver revista Artforum nº 11, 1973). Sua forma de evidenciar a possibilidade de ver na sequência uma demonstração de tipo matemático (a dita demonstração por absurdo) deixa claro o quanto aí não há preocupação em postular uma operação mental passível de ocorrer num espectador qualquer (como forma de universalizar uma teoria da narrativa pautada pelo dinamismo da percepção e das inferências próprias à espécie). O que há é o trabalho de análise do crítico e sua particular capacidade de interpretação da seqüência. O problema mais geral é que Bordwell, por exemplo, é muito preciso na descrição (o que é ótimo), mas sua assepsia no plano hermenêutico o impede de mobilizar contextos moduladores de interpretações que confiram rentabilidade crítica a suas descrições. Vejam o livro sobre Dreyer, ou o capítulo sobre Godard no Narration. Diz muito, num plano, e diz muito pouco em outro. Sim, sabemos que ele é mestre na crítica das formas do "making meaning" presentes na crítica (especialmente a francesa), o que ele faz de uma "posição transcendental", aquém ou além da problemática em que se empenham os críticos comentados (a alusão a Kant não é casual, mas é preciso não confundir a crítica da razão com o zelo de um inspetor geral muitas vezes amesquinhado). Não surpreende que seu papel maior seja o desse constante mapeamento de questões, com tendência a tais operações de esvaziamento, e este excelente trabalho de elaboração de "introduções", mapeamentos de obras, autores, estilos, tudo o que recomendo a meus alunos que leiam sem esquecer o lado redutor de suas análises e a estreiteza de horizontes de sua critica, porque sua concepção do processo cultural é esquemática, classificatória, excessivamente voltada para questões vocabulares que muitas vezes formatam um falso problema.
10. Cinema e Psicanálise, hoje.
Quais são as implicações para a teoria cinematográfica da psicanálise contemporânea (digamos que "pós-lacaniana")? Em que medida o "retorno a Lacan" promovido por Slavoj Zizek atualiza a psicanálise no exame da produção de sentido na experiência do cinema? Até que ponto é correto recolocar a questão do olhar (nostalgia, pornografia e montagem) para tentar explicar os "impasses da dessublimação repressiva" (A EXPERIÊNCIA DO CINEMA) e o contínuo interesse pelo cinema clássico narrativo?
RESPOSTA:
Há pouco de novo sob o sol da psicanálise do cinema. Mas a área continua sempre presente, principalmente nos seus aspectos que já viraram senso comum da crítica. O impacto de Deleuze eclipsou a teoria do "dispositivo" no seu próprio foco irradiador. As revistas francesas continuam, no entanto, a mobilizar Lacan, notadamente Vertigo com seus números temáticos que quase sempre envolvem assuntos afinados ao quadro conceitual da psicanálise. E, na Universidade de Paris III, Muriel Gagnebin, ligada a Jean-Louis Leutrat, lidera um grupo voltado para a análise psicanalítica da imagem que faz uma ponte interessante com estudos literários. Para nós, no Brasil, a história é diferente pois não tivemos a presença forte da teoria do cinema no eixo Lacan-Althusser; ela foi comentada, explicada, mas pouco assumida, ressalvada a premissa do "dispositivo" na crítica ao cinema clássico (vide meu próprio livro). Há uma nova antologia, onde há psicanálise sem necessariamente haver lacanismo, que merece atenção: Psicanálise, cinema e estéticas da subjetivação, organizado por Giovanna Bartucci (Imago, 2000). Voltando à Europa, vocês citaram o melhor exemplo, pois Slavoj Zizek é muito inteligente e faz exatamente uma psicanálise que se articula com uma indagação sócio-política, trabalhando muito bem as implicações do que tensiona a contradição entre a noção do cidadão (indivíduo abstrato, genérico), sujeito de direitos, e os sujeitos concretos de desejos, em conflito com os imperativos da cidadania. Ver seu Looking Awry: an Introduction to Popular Culture through Jacques Lacan (MIT Press, 1991). Ele tem muita ironia e pratica um ensaísmo brilhante que tem como premissa uma psicologia social complicada, sempre centrada na política, como Marcuse a quem vocês aludem no final da pergunta. Não entendi bem o sentido específico desta tríade "nostalgia, pornografia, montagem", mas o horizonte da pergunta é a questão da potência explicativa das categorias psicanalíticas no plano da cultura. Sem me atribuir competência específica para entrar fundo na questão, acho que continua sendo uma boa aposta esta mobilização das matrizes da formação do sujeito na infância para equacionar determinadas demandas coletivas como esta pela narrativa nos termos clássicos. E lembremos que fetiche é também uma noção chave dentro deste terreno (aqui Laura Mulvey, Fetiche and Curiosity, tem muito a dizer).
11. Dogmas, dissidências, experimental, vanguarda
Conhecemos bem (desde a apresentação a A EXPERIÊNCIA DO CINEMA) do seu vivo interesse pelos "outros" cinemas, pela experiência do filme de vanguarda, do underground americano, do cinema de contestação ao modelo dominante norte-americano. Queríamos que você avaliasse a situação teórica da defesa crítica e política em prol de um "cinema de invenção" (Jairo Ferreira), incluindo na resposta uma visão da reemergência do "cinema-manifesto" (Dogma 95), fenômeno que nos remonta às décadas de 1920 e 1960.
RESPOSTA:
A defesa do cinema de invenção perdeu uma dimensão decisiva de seu empenho: a da utopia. No momento do alto modernismo cinematográfico, digamos nos anos 60-70, qualquer proposta de um cinema alternativo trazia um horizonte de mudanças que eram, ao mesmo tempo, do cinema e da sociedade (e não era preciso vincular experimentos ou vanguardas ao socialismo), pois fazer oposição e buscar o diferente era criar um novo espaço institucional de discussão do cinema (como o fez o underground, longe do mercado e da indústria cultural). Ou era fazer a crítica política apoiada num senso de que a própria lógica engendrada na fatura (modo de produção e linguagem) dos filmes era já uma metáfora de uma outra forma de viver e trabalhar, ou seja, a idéia do alternativo trazia um quê de antecipatório, próprio a quem sente o tempo a favor, apesar dos entraves. Agora, o senso maior é de resistência, de quem sente o tempo contra, e leva o barco como uma assembléia dos sobreviventes, dos que ainda não aderiram ao consenso e à festa da indústria cultural. O próprio Dogma, notadamente para nós, brasileiros, que vivemos já a experiência da estética inventada na escassez, tem esta conotação, mesmo que sejamos simpáticos ao grupo e gostemos do que faz Lars Von Trier, por exemplo. O processo de domesticação da transgressão se acelerou, trazendo a cada exemplo de cinema de invenção um destino de rápida classicização: ganha-se respeito, entra-se para o cânon, o que nos incomoda quando consideramos a intensidade com que se vivem determinadas descobertas logo reduzidas a mais um item na prateleira. Não há aquela excitação "sustentável" de esforço teórico novo e prática nova, com aquelas "great expectations" juvenis. O que não significa que não tenhamos todos um elenco razoável de boas experiências e ótimos filmes a listar a cada ano. Falta o clima, a configuração histórica mais ampla capaz de catalisar a invenção que ressoa e "faz época", algo que poderia ser afinado aos 1920 ou 1960.
12. Documentário
Na introdução do Discurso Cinematográfico, você recorta o objeto de análise no cinema ficcional. E faz a seguinte ressalva: "Aqui é assumido que o cinema, como discurso composto de imagens e sons é, a rigor, sempre ficcional, em qualquer de suas modalidades; sempre um fato de linguagem, um discurso produzido e controlado, de diferentes formas, por uma fonte produtora." Algumas das recentes teorias sobre o documentário - como a formulada por Bill Nichols, por exemplo - defendem uma certa especificidade para o campo do documentário, baseadas no princípio de que as narrativas audiovisuais são socialmente indexadas como ficção ou documentário, a partir de determinações diversas: narrativas e extranarrativas, o que implica em diferentes condições de espectatorialidade e portanto de diálogo entre público e obra. Qual é sua reflexão nesse sentido? Será realmente necessário pensar uma especificidade para o campo do documentário? E em que bases analíticas tal reflexão deve ser feita?
RESPOSTA:
O Bill Nichols tem razão. Assim como o Roger Odin quando desloca a questão com suas noções de leitura ficcionalizante e leitura documentarizante. O problema da distinção entre documentário e ficção é mais complexo. E eu já havia reconhecido isto na segunda edição do livro, quando citei a Zulmira Ribeiro Tavares que havia me advertido para a simplificação contida nesta frase que vocês citam. Há um jogo de palavras que faz confundir "representação" (ou mesmo "discurso") com "ficção". O que ela argumentava era o seguinte: a ficção é um processo criativo, um inventar, imaginar. Não é apenas um realismo equivocado que não se reconhece como tal, ou mera vontade de enganar, mentira com aparência de verdade. Estamos habituados a desqualificar um discurso que deseja o efeito de verdade dizendo que é "ficção", o que na época levava a esta equação: cinema=linguagem=não real=ficção. Não é absurdo tal nivelamento, mas ele toma "ficção" num sentido bem redutor e puramente negativo. Estão certos os que assumem ficção e documentário como sinalizações de gêneros de discurso (ou de expectância) diferentes. Por mais que seja palpável a zona cinzenta em que estaria a fronteira, vale a pena explorar caminhos teóricos que a supõem e tentam tornar mais nítido o espaço em que ela se encontra. As bases analíticas para tanto não poderão vir de uma postura estritamente "estrutural", ou seja, supondo que pela exclusiva observação da imagem, em radical imanência, podemos resolver o problema. É preciso retirar o mundo do parêntese que a fenomenologia (solo da postura estrutural moderna) o colocou e voltar a assumir com maior ênfase a conexão entre produto (imagem e som na tela) e processo. E processo, aqui, entendido em duas pontas: na gênese (a produção, os métodos de trabalho) e na função social (enfim, a recepção, as atitudes de recepção que dependem do contexto e da moldura, e não apenas das qualidades intrínsecas à obra). Enfim, é isto que os teóricos estão fazendo. Para resumir, a categoria que deve ser questionada, neste caso, é a da representação, pelo menos em seu sentido clássico. O que um documentário engendra é uma relação entre câmera e sujeitos (as "personagens" do Coutinho) capaz de produzir um acontecimento singular (que tem algo de teatro como toda ação feita para o olhar, mas não o é em sentido estrito); há algo difícil de nomear, que o filme dá a ver e que exige de nós a construção das noções capazes de dar conta do ocorrido. Certamente ficção não é o termo apropriado.
Toda imagem tem o seu sentido alterado pela moldura, pelo contexto, pela legenda, formas variadas de montagem, mas é preciso reconhecer que há algo mais na franja entre a força intrínseca do registro e o poder da montagem. Algo que tem a ver com o que Balázs denominou a fisionomia das coisas, a face do homem, noções que Eisenstein retomou lembrando que, embora a noção de fisionomia tenha perdido a dimensão científica que tinha no século XVIII, algo nomeado por ela, que se liga ao senso de pregnância e expressividade da forma, age decisivamente sobre nós pela imagem de um rosto, pelo grão de uma voz, pelo pitoresco da paisagem, pela contundência de um fato. Há algo mais do que montagem e desconstrução em Vertov, e tem razão Kracauer quando se contorce para explicar a questão da empatia (no sentido de relação intersubjetiva) diante da imagem, e se esforça em elogiar um certo realismo (estranho realismo, como diria Adorno) como vocação do cinema, em total paralelo e como uma espécie de versão laica do evangelho de Bazin. Pensar o documentário, para além das tipologias, é repor estas questões que passam pelo encontro entre olhar e objeto; pelo que há de drama, hesitação, contenção e exibicionismo, pelo peculiar teatro, enfim, que ocorre no aqui-agora da filmagem.
13. O Cinema Brasileiro Moderno
Publicado originalmente em 1995, a nova versão de "O Cinema Brasileiro Moderno" nos dá um quadro sintético e nem por isto menos rigoroso da trajetória do cinema brasileiro desde os anos 1960. Ao abordar a década de 1990, você se empenha em atualizar algumas premissas do diagnóstico sessentista de Paulo Emílio, sobretudo a do "cinema subdesenvolvido", hipótese que, segundo você escreve textualmente "não se pode vislumbrar o momento em que podemos descartá-la". Como você avalia, no bojo destas formulações, o notável e inegável avanço tecnológico do cinema brasileiro, que está sofrendo presentemente uma "pequena" revolução que é a adoção da tecnologia digital que agiliza e barateia o antes insuportavelmente caro processo de produção cinematográfica? Este acesso às tecnologias de ponta não significará, em primeiro lugar, um aumento significativo na produção brasileira (ainda que o problema do mercado pareça insolúvel), gerando uma situação peculiar, em que, sem mercado e com público limitado (baixa demanda) a produção brasileira (de ficção, documentária, experimental) tende a crescer veriginosamente, pela simplificação e desinflação da produção cinematográfica?
RESPOSTA:
É, sem dúvida, inegável a facilitação que as tecnologias digitais produz, permitindo viabilizar filmes localizados numa gama variada de opções estéticas. Enfim, há aí a combinação de potencial criador, liberdade de linguagem e baixo custo. Algo como a tecnologia atual oferecendo uma experiência que tem o efeito viabilizador da estética da fome, mas dentro de outro protocolo estético que teria a vantagem de ser mais elástico no ajuste a diferentes linguagens e estilos de autor. OK. Há aí uma revolução na produção e um salto quantitativo decisivo, no entanto travado em seu alcance pelo que sabemos: o poder na mídia hoje está concentrado nos canais de distribuição e circulação dos produtos, não tanto no fazer. Para completar seria necessário fazer a revolução na distribuição, o que exige mais do que Leis de Incentivo e muito cacife político, lances que, na ordem de coisas atual, são verdadeira miragem. Se vocês têm razão quanto à promessa de crescimento da produção, resta o fantasma que assombra o cinema brasileiro: a questão da "legitimidade" perante a "opinião pública" (por mais vago e clichê que isto pareça). Com baixo ou alto orçamento, com imagem digital ou não, a produção se apóia na Lei, e o mercado não devolve o capital, mesmo que modesto. É o plano da política do Estado, onde entram ainda questões nacionais como identidade, importância estratégica do nível simbólico, e o plano dos interesses da corporação que sustentam ideologicamente tal aparato legislativo indispensável, o que pressiona fortemente os cineastas a buscar os milhões de espectadores. Como justificar a renúncia fiscal e dizer que o cinema brasileiro interessa a todos se não há público, mesmo que expliquemos as razões históricas disto? A estética, os festivais, a crítica, os cinéfilos, tudo isto ajuda, e bastante, porque, não fora a adesão destes setores a um senso de que é imperativa a existência do cinema brasileiro, talvez o modesto aparato legal não estaria aí. Mas a crítica, por si, não leva o grande público ao cinema. E o processo de afirmação do cinema como instituição forte na esfera pública da mídia fica travado, levando a esta idéia de que não dá para descartar o diagnóstico do subdesenvolvimento econômico, ou seja, um cinema cuja infraestrutura e presença na sociedade estão aquém do que deveria.
Na dinâmica que envolve autores, obras e público, este último é o pólo frágil, esgarçado, que impede a consolidação do sistema do cinema brasileiro na acepção de Antonio Candido (formação da literatura) que Paulo Emílio assume como horizonte não nomeado e que meu texto comenta explicitamente. Claro que há aí possíveis mudanças de escala que permitiriam propor a idéia de um cinema "formado" no plano de sua trajetória estética, cinema que encontraria seu momento decisivo no cinema moderno (a produção da retomada recente confirmaria tal idéia de que o cinema brasileiro "faz sistema", neste sentido mais restrito de autores, obras e críticos). Neste caso, estaríamos descartando a pedra de toque trazida pelo que chamei de esfera pública da mídia, e estaríamos dizendo que, na era da televisão, o cinema virou coisa para poucos. Mas temos de reconhecer que, de fato, não é isto o que ocorre em outros países como Estados Unidos e França, ou Índia e os asiáticos emergentes. Ou seja, o cinema tem um potencial de disseminação social (fundamental para sua relevância na formação do imaginário hegemônico) que aqui não chegou a termo, embora acumulemos conquistas estéticas e uma diversidade de experiências que compreende o curta-metragem, o longa narrativo-dramático, o documentário, o filme experimental. Tomando as idéias de José Paulo Paes para a literatura, o que nos falta é a produção média, o cinema de entretenimento forte. Será que a tecnologia digital vai permitir criar tal segmento e dar-lhe força para furar os bloqueios?
A questão aqui é que pensar numa cinematografia nacional não permite que você se restrinja a uma reflexão e aos problemas do "cinema de arte" que a mim, por exemplo, satisfaz e "faz sistema" em diálogo com a cultura dos festivais e das mostras, das universidades e das cinematecas. Neste sentido, contribuir para uma resposta positiva à pergunta feita acima, é retomar a postura de Glauber Rocha em sua aparição no filme Vento do Leste (1969), de Godard, quando polemizou com o diretor francês e afirmou que o caminho do cinema do terceiro mundo não era propriamente a desconstrução como palavra de ordem geral, mas a construção de cinematografias nacionais que exigiriam outras opções de linguagem, por mais dolorido que isto fosse. Ele foi aí pragmático e verbalizou o que seus filmes nunca seguiram, pois sempre reafirmaram o experimental, com leves acenos de comunicação de massa em O dragão da maldade. Foi com este dilema - a distância entre o que a gente pensa, em tese, sobre o que deveria ser feito coletivamente, e o que a gente investe criticamente em debates que, para nós, são indispensáveis na defesa da qualidade - que terminei, lá atrás, o livro com que começamos esta conversa, O discurso cinematográfico. O tempo passou, mas certos impasses se reiteram.
Nota dos entrevistadores
Ismail Xavier se refere ao projeto de indexação da revista CINEARTE, feito por Lécio Augusto Ramos, Hernani Heffner, Lúcia Maria Pereira Bravo e Osmar José Guimarães da Silva para a extinta Embrafilme (1984).
* Alunos do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da UFF.
O cinema e os filmes ou doze temas em torno da imagem
Entrevista a Pedro Plaza Pinto, Mariana Baltar Freire, Fernando Morais e Lécio Augusto Ramos*
Niterói/Rio de Janeiro/São Paulo março/abril/outubro de 2002
"Tudo se empobrece quando se fala do cinema sem falar dos filmes.
Não se pode resenhar conceitos dos grande autores e observar os filme
tateando com uma bengala e fazendo ouvidos de mercador."
1. Biografia e Trajetória
Queríamos inicialmente desenhar um perfil de sua trajetória profissional. Primeiro, alguns dados biográficos que você achar pertinentes. Depois: como se deu a sua aproximação com o cinema? Como foi a sua formação na USP? Que influências (brasileiras e estrangeiras) foram decisivas para você? (Paulo Emílio, Antônio Cândido e a geração de ouro da FFCL da USP, etc.) Você certa vez confidenciou que atua numa área crítica, de reflexão, e não na área da pesquisa em fontes primárias (polivalência, por exemplo, que podemos atribuir a Jean-Claude Bernardet, a Maria Rita Galvão, a Carlos Roberto de Souza, a João Luiz Vieira, entre outros. Isto significaria que você prefere por opção trabalhar num campo mais teórico, mais reflexivo por vocação ou opção pessoal?
RESPOSTA
A minha aproximação com o cinema se deu quando entrei na USP, em 1965, para estudar engenharia. Por influência de amigos com quem trocava idéias sobre tudo, já desde a época do colegial, passei a freqüentar salas de cinema de arte (como o Cine Bijou) e entrei para a Sociedade Amigos da Cinemateca, em 1966. Como sócio da SAC pude ouvir as pessoas ligadas à Cinemateca e que compunham um pensamento cinematográfico de esquerda: Paulo Emilio, Jean-Claude Bernardet, Rudá de Andrade, João Batista de Andrade, Francisco Ramalho Jr., João Silvério Trevisan. No entanto, o primeiro curso sobre cinema que fiz se deu no Foto Cine-Clube Bandeirantes, organizado por Adhemar Carvalhaes, que fazia parte da crítica em oposição ao grupo da Cinemateca. A parte interessante do curso contou com a participação de cineastas como Roberto Santos , então trazendo o prestígio de quem havia feito a obra-prima A hora e a vez de Augusto Matraga, Anselmo Duarte e Walter Hugo Khouri, o que, com exceção do Roberto Santos, nosso herói naquele momento, nos colocava (aos alunos) no terreno distante do Cinema Novo. Houve uma experiência curiosa de cinefilia: visitar os estúdios da Vera Cruz onde Khouri filmava o seu episódio de As cariocas. Este lado cinéfilo foi sempre, no meu caso, suplantado pelo fato de que tal aproximação estava articulada ao interesse pela política. Dentro do movimento estudantil, ainda em 1966, atuei bastante na área cultural do centro acadêmico da Politécnica-USP e cheguei a organizar, com um amigo da faculdade de direito, o Fernando Albino, um ciclo sobre cinema brasileiro então contemporâneo (que envolvia, Khouri, Anselmo Duarte, o Cinema Novo), ocasião especial para conhecer alguns críticos de cinema de São Paulo: Rogério Sganzerla, Paulo Ramos, Maurice Capovilla. O Trevisan ajudou na composição do ciclo; ele trabalhava na Cinemateca, sendo muito ligado ao Jean-Claude Bernardet, o que fez o ciclo ter um viés de valorização do filme do Person, São Paulo S/A. Neste momento, houve também o encontro com Gustavo Dahl que passava por São Paulo no dia da exibição de Barravento, e topou fazer a apresentação. O diálogo com cineastas e líderes da MPB era fácil e as coisas eram resolvidas sem maiores formalidades, inclusive para shows de música na Universidade, onde também tive uma experiência que foi decisiva, me colocando em contato com Chico Buarque, Geraldo Vandré e Gilberto Gil. Em 1967, a ECA se inaugura; faço parte da primeira turma. Começamos com Rudá de Andrade e Jean-Claude, depois Paulo Emilio, Roberto Santos e Maurice Capovilla. Jean-Claude e Paulo Emílio foram os interlocutores-chave no binômio 67-68, antes da cassação de Jean-Claude depois do Ato nº 5. De qualquer forma, continuamos em contato pois, entre outras atividades, havia um grupo de estudantes que passou a fazer crítica de cinema no Diário de São Paulo, entre julho de 68 e junho de 70, grupo de que eu era o coordenador, conforme decisão de Paulo Emilio, Jean-Claude e Rudá. Maria Rita Galvão passou a dar aulas na ECA mais tarde, não tendo um contato sistemático com a minha turma, mas já compondo, para mim, o grupo central de diálogo. Formado na ECA, entro para o Mestrado na Letras, na área de Teoria Literária, em 1971, com a orientação de Paulo Emilio, num diálogo que começa a sua fase mais rica para mim. Conheço, por outro lado, Antonio Cândido; seus cursos compõem até hoje a maior referência para o meu trabalho de análise. Este é um período decisivo de formação. Como orientando do Paulo Emilio, eu participava de uma reunião periódica na casa dele, em que discutíamos os projetos de pesquisa em história do cinema brasileiro, junto, entre outros, com Maria Rita, Jean-Claude e Carlos Roberto de Souza. Foi um momento em que a disponibilidade de tempo permitiu que eu seguisse o mestrado, preparasse a tese e seguisse cursos na filosofia, onde foi fundamental a amizade com Marilena Chauí. Ela foi decisiva, também, no descongelamento de meus referenciais teoricistas e quase positivistas, resultado da primeira profissão (professor de Física em cursinho), da formação estruturalista que tive na parte extra-cinema da ECA (muita linguística, antropologia estrutural e teoria da comunicação) e do "positivismo" althusseriano (fui dos que leu muito Althusser na época de movimento estudantil - e a noção de prática teórica, teve seu papel no meu trajeto entre 1968 e 1971, ano que Marilena entra em cena). Neste ítem "formação", digamos que, além do terremoto causado pelo binômio teoria literária-filosofia, próprio a este período 1971-75, outro momento importante foi o de New York, com destaque para o diálogo com Annette Michelson, na New York University, quando aprendi muito desta análise formal que faz parte do meu trabalho, e para o diálogo com Jay Leyda, no plano da pesquisa em história, quando participei do Projeto Griffith, em 1976-77 (o mesmo do qual participou João Luiz Vieira a partir de 1978). Esta foi uma experiência de ver nascendo a nova história de Tom Gunning, Charles Musser, André Gaudreault, Noel Burch (que passou pela NYU em 1976), entre outros.
Vocês têm razão quando lembram que, até aqui, o trabalho de historiador, no sentido de pesquisa em arquivo com levantamento original e sistematização de fontes primárias, não tem sido a tônica do meu trabalho. Mas houve circunstâncias em que tive este tipo de experiência, pela natureza do objeto estudado e pela ajuda de outras pessoas (primeiro Paulo Emílio, que foi o mestre fundamental ao longo de 7 anos, na aula, na orientação do mestrado, no seminário na casa dele, na Cinemateca). Alías, Paulo Emílio, com a sagacidade de sempre, percebeu, no início do mestrado, que não podia me transformar, de imediato, em um pesquisador do cinema brasileiro no sentido que tal palavra tinha em 1971 (recorte de tipo historiográfico, com ênfase à história da produção, com pouca análise dos filmes), e propôs que eu canalizasse meu claro interesse pelo debate ideológico-político e pela teoria na direção de um balanço histórico dos primórdios do pensamento cinematográfico. Daí surgiu o projeto França-Brasil, emergência da teoria lá e cá, influência dos franceses da vanguarda aqui, nos modernistas, e análise do pensamento mais avançado no Brasil: o do FAN, com destaque para Octavio de Faria e Plínio Sussekind Rocha. Paulo Emílio me passou tudo o que tinha sobre o Chaplin Club, e a Cinemateca abriu a coleção de Cinearte; na USP, pesquisei as revistas modernistas. Há algo aí de trabalho com fontes primárias numa iniciação à história da crítica cinematográfica. A generosidade de Alex Viany completou um primeiro quadro: ele me colocou nas mãos uma coleção de recortes e transcrições datilografadas de revistas como A tela e Palcos e Telas, um material que me ajudou a montar um capítulo do trabalho. O que não fiz de moto próprio foi uma pesquisa sistemática que poderia levar a um avanço na história da crítica feito a partir da pesquisa em periódicos (do tipo que Arthur Autran fez com Pedro Lima e que vocês* têm feito com Cinearte). Em 1975, quando eu estava em Nova York, o interesse pela formação da narrativa me levou à velha pergunta pela origem do cinema clássico. E Jay Leyda estava dando os seminários sobre Griffith. Sopa no mel. Aí pude ter o sentimento de revelação que se tem quando se abre um novo arquivo, pois vi junto com o pessoal de lá (o Charles Musser, em especial, pois íamos juntos à Biblioteca do Congresso para trabalhar, ele pesquisando Porter, eu Griffith) todos os filmes dos primeiros anos da carreira de Griffith. Ou seja, neste caso fiz trabalho de historiador, concentrado no exame filme a filme, do que resultou um artigo sobre a evolução da montagem no cinema de Griffith entre 1908 e 1909, seus primeiros cem filmes, artigo só publicado mais tarde na Itália, na Revista Griffithianna, de Gênova, num número especial organizado por Jay. Ainda em Nova York, montei o projeto de Tese sobre as alegorias no cinema brasileiro dos anos 60 (que terminou, em sua primeira versão, em 1982, quando completei o doutorado lá). A partir daí, concentrei-me no que mais interessa: trabalhar com cinema moderno, e me coloquei como tarefa desenvolver a análise de filmes, tipo de trabalho que não estava desenvolvido no Brasil (basta ver a bibliografia sobre cinema e o tipo de análise então existente, quando esta última ganhava relevo). O resultado disto é conhecido: as análises formais e o esforço de extrair o melhor de tal método de estudo imanente da imagem-som, o que foi um gesto deliberado de convite, de minha parte, para que se desse maior ênfase ao conhecimento detalhado dos filmes, para contrastar com o que eu achava um historicismo excessivo: acumulação de dados em torno dos filmes e pouco exame das obras.
Razão maior disto tudo: era preciso demonstrar o valor estético do cinema moderno brasileiro, e de Glauber em particular, o que só seria possível fazendo o que estudos mais sistemáticos não haviam feito: articular análise estilística e interpretação, mostrando qual cinema cada cineasta inventou e porque; ou melhor, com que implicações no plano do sentido e das relações entre cinema, política e história. Para tanto, procurei combinar a minha formação cultural e teórica obtida com os mestres da revista Clima - Paulo Emilio e Antonio Candido - com o choque de empirismo norte-americano que ainda deixa traços na minha preocupação em descrever (o que não é um ato inocente) e em chamar os exemplos que evidenciam uma "verdade teórica" apenas enunciada, o que, em termos de crítica, significa dizer onde, no detalhe do filme, se mostra como imagem e som "produzem" o sentido afirmado. O esforço foi então o de apurar a análise formal, pois é na forma que procuro encontrar os nexos entre cinema e sociedade, estética e política, incorporando, enfim, uma tradição que, no Brasil, passa por um crítico como Roberto Schwarz e, no contexto novayorquino, pelos que tinham sido alunos de Clement Greenberg, embora não sejam hoje seus repetidores (como é o caso de Annette Michelson que, com Rosalind Krauss, fundou, em 1976, a revista October). Acumular e examinar de forma sistemática a documentação em torno dos filmes ficou para segundo plano (mesmo porque isto era algo que outras pessoas estavam fazendo). Era preciso testar o alcance e os limites da análise imanente (o que podem dizer as imagens?) e evitar o que acho o pior: ver nos filmes apenas aquilo que os próprios cineastas dizem que está lá, ou apenas aquilo que o elenco de idéias que marcam um movimento estético definem a priori, confundindo intenções ou proclamações ideológicas com a dinâmica efetiva da linguagem, coisa que muita gente "escolada" ainda insiste em fazer.
Enfim, depois desta longa narrativa, devo responder que sim, não me pautei por seguir o caminho usual da pesquisa histórica, por todos os títulos fundamental e indispensável; mas digo também que não me afastei de todo da questão, pois os filmes são também fontes primárias por excelência se a meta é avaliar a força de uma proposta estética, a especificidade de uma experiência cultural e seu valor quando posta em cotejo com outras. Mesmo que o objetivo seja examinar o papel das idéais e a validade de uma postura crítica, há que se confrontá-las com o objeto que produzem ou que interpretam. Ou seja, tudo se empobrece quando se fala do cinema sem falar dos filmes. Não se pode resenhar conceitos dos grande autores e observar os filme tateando com uma bengala e fazendo ouvidos de mercador.
2. Obra
De SÉTIMA ARTE: UM CULTO MODERNO (Ed. Perspectiva), até o recente O CINEMA BRASILEIRO MODERNO, sua obra, majoritariamente dedicada ao cinema brasileiro, tornou-se uma referência para os estudos cinematográficos do país. Você faria hoje alguma reavaliação, alguma revisão crítica de alguma de suas obras, no sentido de reconhecer em algum momento que tenha assumido uma perspectiva teórica ou crítica que hoje não lhe pareça mais "sustentável"?
RESPOSTA
Em termos de estrutura, o livro que me incomoda é o Sétima Arte. E explicar porque é já uma forma de engatar na resposta anterior. Paulo Emilio me deu uma sugestão que, em verdade, para melhor entendedor, deveria me levar a uma concentração do trabalho no pensamento brasileiro. Mas eu ainda estava ligado demais na questão de "origem da teoria do cinema" e não abri mão de Canudo, Epstein e outros como objetos de um estudo com validade própria. A divisão do livro em duas partes - primeiro a teoria na França, depois a análise de três contextos de crítica e teoria no Brasil - espelha a história do trabalho que começou como uma exposição didática de noções, algo que era mais adequado ao exame da teoria francesa. Esta era menos acessível na época e não havia estudos sistemáticos mesmo na França, o que favorecia, num mestrado, a apresentação de conjunto, sem detalhamentos da história de algumas noções e sua relação com a produção cinematográfica. Tal insistência definiu um padrão para o trabalho que hoje não me parece a melhor opção para a apresentação do pensamento cinematográfico brasileiro. Talvez o melhor teria sido eu me concentrar na pesquisa histórica e fazer com que a lógica do trabalho saísse do corpo a corpo com a crítica brasileira, de modo a só me referir, na exposição, ao contexto francês quando fosse necessário explicar alguma noção vinda de lá. Para a minha formação, isto teria alcançado maior rendimento, pois teria aprofundado melhor minha relação com o contexto brasileiro no período.
Quanto a O Discurso Cinematográfico, claro que o ponto de vista organizador seria outro agora. A questão da desconstrução não teria tanto espaço, e também haveria mais pormenores no aspecto pedagógico (o livro é às vezes difícil para o iniciante). Algumas frases são por demais simplificadoras (como a sobre o documentário - ver questão 11 - e sobre a questão do real e da ideologia.). O que me "salvou" no envolvimento com os exageros da época foi meu "estilo indireto livre". Este permite assumir as vozes do tempo no meu próprio texto, sem, no entanto, assumir as afirmações como verdade inconteste - vide as reticências quanto ao desconstrucionismo, e o que ainda considero minha forma equilibrada, com as nuances do estilo indireto, de expor formulações bem datadas.
Quanto aos livros de análise do cinema moderno, a forma como foram lidos me ensina o quanto eu deveria ter sido mais didático nas introduções. Como eu estava desconfiado de resenhas teóricas e julgava que o próprio movimento das análises seria autoexplicativo, eu disse pouco sobre o meu "método" ou mesmo sobre as premissas. É enorme o número de teses que se estendem em introduções que são meras resenhas de teorias e depois praticam uma análise do objeto que pouco tem ver com a introdução. Certo colonialismo teórico e certo academismo estéril têm produzido, às vezes, teses de pouca valia justamente por isto. Às vezes, é mais fácil para o jovem pesquisador se "segurar" na resenha teórica do que efetivamente dizer algo de original e pertinente sobre os filmes. No pior dos casos, a introdução e o uso de conceitos de prestígio funcionam como pura maquiagem que encobre a anemia do crítico. Em contraposição a isto, fui lacônico e perdi a oportunidade de me antecipar a objeções tolas que às vezes aparecem, ou mesmo a mal entendidos bem intencionados. Na introdução do Sertão mar, eu deveria ter sido mais incisivo na discussão do que é análise imanente, do que é narrador no cinema e na literatura, do que é estilo indireto livre, e de quais são, afinal, as implicações do uso que faço da alegoria como categoria de interpretação. No Alegorias do subdesenvolvimento, eu poderia ter incluído o meu texto "Alegoria, modernidade, nacionalismo" que foi escrito em 1984 e publicado numa separata da FUNARTE pelo Adauto Novaes; esse texto explica de forma didática o que a introdução do livro apenas resume. Mas eu estava envolvido em outras discussões sobre as relações do cinema com a cultura no Brasil. Hoje, estou convencido de que, às vezes, vale a pena explicitar as "questões de método", mesmo que isto adie um pouco o contato com o objeto. O mesmo vale para certas categorias que são comuns na referência a Glauber, como o barroco. Vejam como fui discreto na referência a Benjamin na análise de Terra em Transe, coisa que eu deveria ter acentuado porque era uma forma de deixar mais claro porque só falei em barroco quando estava em pauta a idéia do "drama barroco", com todas as implicações políticas de tal noção.
3. O Discurso cinematográfico e A experiência do cinema, hoje.
Vinte e cinco anos depois da primeira edição, como você revê "O Discurso Cinematográfico", que é, achamos que sem contestação, a primeira obra de autor brasileiro sobre teoria cinematográfica, num sentido rigoroso, o que nos leva não a excluir, mas relativizar o alcance de alguns predecessores no âmbito da produção de conceitos em cinema? Em que direção caminharam as "estéticas cinematográficas"? Como você vê a aceitação, a inserção deste livro nos estudos cinematográficos desde então? Em relação à antologia A EXPERIÊNCIA DO CINEMA, se você fosse convidado para organizar uma nova edição, que outros textos a comporiam e por quê? Você manteria a mesma estrutura ou faria algumas (ou muitas) modificações? Qual seria a linha condutora de um novo "posfácio" a O DISCURSO CINEMATOGRÁFICO?
RESPOSTA:
Como observei, O discurso cinematográfico está muito pautado pelo debate da época em torno do estatuto ideológico do cinema "em geral" - do "dispositivo", como dizia Baudry, ou "apparatus" como traduziu a teoria anglo-americana. Como era importante a relação entre cinema e política, e como era importante a especificidade da análise estética, eu me alinhei "grosso modo", e evitando o que achava excessos, com a forma muito peculiar com que o descontrucionismo foi incorporado à crítica cinematográfica (visto pela esquerda que pensava, não em Derrida, mas em Brecht e na afirmação de sentidos, não apenas nas operações de suspensão do sentido). Resultou o privilégio à oposição entre opacidade e transparência, onde o primeiro termo tinha mais valor do que o segundo. O mérito do livro foi adotar um critério claro para colocar uma ordem e uma hierarquia nas teorias apresentadas, tanto mais valorizadas quanto mais contribuíssem para a concepção de cinemas alternativos ao cinema clássico industrial (alvo maior da crítica). O livro foi escrito em Nova York, sob o impacto da descoberta do que era afinal o cinema underground e sua riqueza, e do que eram as idéias que o alimentavam dentro da tradição modernista, o que permitia ampliar o horizonte de quem tinha uma formação "européia" (acabei sendo um dos primeiros a ir para os Estados Unidos e ampliar nossas referências). O livro foi escrito com uma tônica de resenha própria ao gênero (o que às vezes resulta esquemático), mas o decisivo era ter um ponto de vista contemporâneo para colocar as teorias em perspectiva, lado mais vivo do livro, pois se definiu uma lógica no panorama traçado e se deixou nítida a minha posição em favor de experiências do cinema moderno, com eleição de Godard como paradigma maior. Mas falta, de qualquer modo, nuance em certas passagens. O cinema clássico é mais complicado. Não discuti a questão dos gêneros. E o que falei sobre o documentário é genérico demais, com algumas reduções (ver questão 12).
Rever? Voltando lá atrás, eu teria melhor explicado as categorias descritivas usadas por todos nós quando falamos dos filmes (os termos da dita "linguagem cinematográfica"), para tornar mais acessível a discussão estética que domina o livro. Falando a partir de 2002, é impossível imaginar uma empreitada semelhante. Os focos de teoria se multiplicaram, e também as problemáticas, ou seja, o conjunto de problemas que cada teoria formula e procura resolver. Diante do múltiplo atual, eu seria obrigado a uma escolha do problema a ser trazido ao centro. Precisaria pensar mais. No entanto, tenho certeza de que acentuaria a importância da história no debate, falaria mais desta incidência das novas pesquisas sobre a formulação de conceitos, e também da incidência dos problemas que os novos filmes suscitam. Não teria hoje UM ponto de vista teórico, pois as reflexões existentes estão tentando discutir problemas diferentes.
Quanto ao pósfácio possível, em termos práticos, já enfrento a questão. O Fernando Gasparian (Paz e Terra) quer republicar o livro desde que atualizado, ou seja, algo como um capítulo a mais para dizer o que houve depois. Não dá. Seria o desequilíbrio total, pois os últimos 25 anos não seriam apenas mais um capítulo. Há novos conceitos e nova configuração, o que exige uma nova forma de organizar a exposição. Vocês mesmos trazem à conversa os novos influxos na filosofia do cinema (Deleuze na França, a filosofia analítica e os discípulos de Wittgenstein nos Estados Unidos, Fredric Jameson e sua análise marxista do contemporâneo) e a nova teoria do documentário. E há o debate entre a estética e a sociologia da cultura, debate renovado agora com a consolidação do "cultural studies" no mundo anglo-americano e sua rejeição no mundo francês. Ênfase deveria ser dada aos estudos de recepção, onde se pode inserir a intervenção dos cognitivistas em seu debate com a psicanálise. Hoje estou mais atento às questões da retórica da imagem (em função, claro, de minha lida com a alegoria) e a outras formulações do problema, como a teoria do "figural" de Philippe Dubois. E também estou mais atento à teoria dos gêneros (seja no sentido clássico - lírica, épica, dramática -, seja no sentido das classificações da indústria). Muito do que tenho feito procura explorar as relações de afinidade entre melodrama e cultura visual moderna; tenho reiterado a idéia de que as relações entre o espetáculo e as matrizes melodramáticas é mais profunda do que se reconhece. O que repercute na avaliação crítica do cinema clássico.
Nos anos 70, a minha caracterização deste cinema não é incorreta, mas é sumária. Não dá conta de muitos problemas que agora ganham maior nitidez: o papel das "atrações" (Tom Gunning) dentro dele, as tensões entre o narrativo e o visual, a estrutura e função da trilha sonora. As estratégias do moderno foram incorporadas ao cinema corrente, e a retórica da imagem se alterou num contexto que inclui novos gêneros e tende a potencializar efeitos de um mundo de artifícios assumido como tal. O cinema industrial mobilizou a alta tecnologia para o adensamento dos efeitos especiais que colocam a força da imagem numa esfera autônoma. Um enorme narcisismo (o mesmo de que se acusava a vanguarda) faz da técnica o espetáculo, tornando mais complicada a questão da transparência, embora esta permaneça, uma vez que as regras de continuidade (e motivação) continuam valendo, assim como os paradigmas extraídos da mitologia. O fetichismo se torna um conceito mais decisivo na discussão da imagem e do som hoje.
Quanto a A experiência do cinema, não pensei em uma nova edição, se entendida como atualização. O livro tem sua função e continuará tendo como está, sem tudo o que veio depois de 1983. Fazer outra antologia agora não está nos meus projetos, pois estou com a agenda saturada. A escolha de textos leva tempo, mesmo quando você sabe que tendências devem estar representadas. E existe a questão de não repetir o que já está encaminhado de forma aceitável em outras antologias. Não tive tempo, por exemplo, de examinar com cuidado a antologia organizada pelo Robert Stam e o Toby Miller citada por vocês: ela é admirável, num exame preliminar, pela abrangência e pela pedagogia. Há uma outra antologia deles também editada pela Blackwell - A Companion to Film Theory - que inclui um texto meu sobre alegoria e história no cinema. Esta eu conheço melhor. Mas não sei se é o caso de traduzir. Este jogo de antologias é interminável. Mesmo no caso da publicação em 1983, tive frustrações. Por exemplo, eu planejara ter os textos da Communications nº 23 (1975), mas houve outra edição em português que atropelou a minha. Gostaria de ter dado mais espaço para a definição, dentro de diferentes perspectivas, do cinema moderno (algo de Burch cujo livro saiu depois pela Perspectiva, o texto de Pasolini sobre o cinema de poesia).
Para terminar, devo dizer que a coleção da Cosac & Naify - Cinema, teatro e modernidade - expressa o recorte que me interessa fazer agora, mais voltado para as implicações teóricas da pesquisa dos historiadores e dos estetas, como Jacques Aumont, que pensam o cinema em relação a outras artes. A premissa maior, neste sentido, viria da constatação - comum a franceses e anglo-americanos - de que a Grande Teoria do cinema está em crise como campo unificado de questões. Vejam o número da revista da Marie-Claire Ropars-Wuillemier, do Pierre Sorlin e da Michèle Lagny, Hors Cadre - o nº 6, se não me engano - do final dos anos 80, sobre a crise da teoria. E o que tem pautado as explorações de Bellour no terreno da "entre-imagem", as explorações de Philippe Dubois na questão da figura, e o movimento em direção a uma revisão da estética - em que se insere a questão do cinema - feito por Jacques Aumont. Nos Estados Unidos, há a antologia Post-Theory dos cognitivistas, supondo enterrada (ou desejando enterrar) a teoria do "dispositivo", esta apoiada na psicanálise, como o último grande esforço (frustrado) de unificação teórica depois das tentativas dos estruturalistas.
4. Som
A antologia A EXPERIÊNCIA DO CINEMA fecha com um texto sobre o som: o de Mary Ann Doane, A voz do cinema: a articulação de corpo e espaço. Os anos seguintes à edição de A EXPERIÊNCIA DO CINEMA trouxeram um espaço maior para a discussão sobre o som no cinema, que perpassou a década de 1980 e adentrou os 1990. De um lado do Atlântico, houve o grande empreendimento de Michel Chion, com os vários volumes dedicados exclusivamente ao estudo do som nos filmes; do outro, o esforço compilatório de pesquisadores americanos, cenário em que se destaca Rick Altman, que tem obra significativa quanto a uma revisão do advento do som no cinema, bem como à desconstrução dos pressupostos através dos quais o som foi relegado a um papel secundário que se cristalizou enquanto os campos da teoria e da análise fílmicas se consolidavam. A se fazer uma compilação que compreendesse os anos posteriores ao fechamento da edição original, tal corpo teórico, que trouxe à tona a discussão sobre o som, teria espaço? Ou seja, teria, na sua opinião, relevância suficiente para tanto?
RESPOSTA:
A questão do som no cinema foi, durante muito tempo, o ponto cego da teoria. Nos anos 80, tivemos o grande salto na sistematização e nas pesquisas históricas: Michel Chion e Rick Altman, nos aspectos mais gerais, como vocês bem lembram, e uma quantidade grande de estudos sobre a música no cinema clássico e sobre a as relações entre voz e imagem a partir das questões postas pela narrativa (voz over) no filme noir e por certas experiências do cinema moderno francês (Tati, Godard, Duras, Resnais, Robbe-Grillet). Chion mesmo trabalhou muito bem a questão da voz desde Fritz Lang, cunhando a noção de "acousmatique", para se referir ao som da voz que não tem corpo e leva a todo tipo de interrogação quanto ao seu lugar de emissão. Aliás, esta questão do elemento que procura o "seu lugar" é central para a teoria de Chion a propósito do som no cinema, pois ele descarta a idéia de "banda sonora" como um espaço coerente, com lógica e estrutura próprias, que daria "abrigo" e sentido aos elementos sonoros presentes num filme. As observações de Chion sobre as relações entre o espetáculo cinematográfico e o teatro, ou a ópera, devem ser mais exploradas, bem como tudo o que a teoria do melodrama, mais desenvolvida na Inglaterra e nos Estados Unidos, tem lembrado na ênfase que dá a estas mesmas afinidades que aproximam o cinema narrativo-dramático da tradição do palco.
Claro que isto ajuda, e deve ser estudado com maior rigor. Mas, afora as classificações, é nítido, em termos estéticos, que os cineastas estejam à frente na proposição de questões interessantes, e isto desde Eisenstein com a sua noção de "montagem vertical", inspiradora de muita coisa, mesmo que o pessoal de música tenha restrições a uma das formas do "vertical" - o contraponto sonoro. Em verdade, a questão da música no cinema - seja enquanto presença sonora efetiva, seja enquanto metáfora estrutural - inibe a maioria dos críticos, pois a música exige competência específica para a análise (e o lado técnico dos trabalhos sobre Bernard Herrmann, como o de Graham Bruce, e sobre outros compositores confirma isto). Como, por esta via, há limites claros, cada um procura explorar o caminho mais ajustado à sua formação. Eu, por exemplo, me concentro na questão da voz e seu papel na narrativa em função da teoria literária, o que acabou marcando minhas análises de filmes desde os tempos da lida com o cinema de Glauber no Sertão Mar. Curiosamente, só sistematizei melhor, em termos teóricos, o que já estava presente "em estado prático" no meu texto sobre Deus e o Diabo, quando fiz meu texto sobre o São Bernardo ["O olhar e a voz: a narração multifocal no cinema e a cifra da história em São Bernardo", publicado na revista Literatura e Sociedade nº 2, 1996]. Só aí - e também no texto "Parábolas cristãs no século da imagem" [revista Imagens nº 5, 1995] - ficou explícito o problema da narração multi-focal no cinema (ponto de vista da câmera, mise-en-scène, vozes, música, etc...) e o que se pode derivar daí na análise da diferença entre o cinema clássico e o moderno. Enfim, este é um terreno muito rico e pouco estudado, que pede maior empenho de todos nós que nos inserimos numa cultura em que a música popular ocupa um lugar central e tem uma interação forte com o cinema, sem contar a importância das adaptações literárias em que vem a primeiro plano a questão do narrador e da voz-over.
5. Antologias
Ultimamente, muitas antologias de teoria do cinema têm aparecido no mercado editorial internacional. Quais as que você destacaria como as mais importantes para o campo dos estudos cinematográficos? (Robert Stam, por exemplo).
RESPOSTA:
Claro que vou esquecer muita coisa. De qualquer modo, além das duas antologias de Robert Stam e Toby Miller, que ainda pensam o problema da reflexão sobre o cinema em geral numa perspectiva pedagógica, com um apanhado capaz de sugerir uma história das teorias, há antologias que afirmam uma perspectiva de trabalho bem definida, como o Post-Theory: Reconstructing Film Studies, organizado por David Bordwell e Noel Carroll [University of Wisconsin Press, 1996], livro de defesa dos pressupostos cognitivistas. A tônica agora é esta, ou seja, a antologia que afirma um programa de trabalho ou um recorte temático, ou um problema, sempre com intersecções entre os campos: cinema e filosofia, cinema e história, cinema e novas tecnologias, cinema e teoria dos gêneros dramáticos, cinema e feminismo, cinema e pintura, cinema e teatro, ou cinema e melodrama. Inspirados em Walter Benjamin e Georg Simmel, Vanessa Schwartz e Leo Charney organizaram a excelente antologia, O cinema e a invenção da vida moderna, que inaugurou a coleção que dirijo para a Editora Cosac & Naify. Num movimento paralelo ao de Schwartz e Charney, Dudley Andrew organizou The Image in Dispute: Art and Cinema in the Age of Photography [University of Texas Press, 1997]. Há uma imensidade editorial em torno do "cultural studies" e do multiculturalismo; neste caso, o melhor é começar pelo livro do Robert Stam e da Ella Shohat, Unthinking Eurocentrism; Multiculturalism and the Media [Routledge, 1994]. Thomas Elsaesser tem uma excelente síntese da questão do cinema no início do século: Space, Frame, Narrative [BFI, 1990]. Sobre os gêneros da indústria, há a antologia de Nick Browne: Refiguring American Film Genres: Theory and History [University of California Press, 1998]. No plano da reflexão estética mais adensada, Jacques Aumont organizou, a partir de seminários da Cinemateca Francesa, uma série de excelentes antologias concentradas em diferentes temas, todas publicadas pela própria Cinemateca (destaco a que se concentra em Jean Epstein, a que tematiza "a invenção da figura humana no cinema", e a que discute a noção de "mise-en-scène" - esta última, aliás, publicada no ano passado na coleção organizada pelo Philippe Dubois para uma editora belga, a De Boeck Université). Para terminar, aí vão referências no campo das relações entre cinema e história: The Historical Film: History and Memory in Media [org. Marcia Landy, Rutgers University Press, 2000], De l'histoire au cinéma [org. Antoine de Baecque e Christian Delage, Éditions Complexe, 1998], The Persistence of History: Cinema, Television and the Modern Event [org. Vivian Sobchack, Routledge, 1996] e Revisioning History: Film and the Construction of a New Past [org. Robert Rosenstone, Princeton University Press, 1995].
6. Teoria, Crítica e História do Cinema no Brasil
Como você vê, dos anos 1970 para cá, a inserção da experiência do cinema como pauta para os estudos acadêmicos no Brasil? Quais foram os "becos sem saída", "as encruzilhadas" e os "novos caminhos"? Qual é a herança de uma crítica estética participante, política, nos estudos de cinema?
RESPOSTA:
Esta inserção ajudou a desenvolver o que exige trabalhos mais sistemáticos de pesquisa, como os voltados para a história do inema brasileiro, embora não na intensidade que se esperava há 20 anos. Acho que tais estudos estão menos representados no espectro acadêmico hoje do que deveriam, havendo maior concentração deles no eixo Rio-São Paulo, onde estão também as duas cinematecas e os principais arquivos (como o da Cinédia, como vocês sabem). Outra conseqüência da consolidação dos estudos acadêmicos na área foi a maior circulação de teorias, mais propriamente do que o debate teórico, pois as diferentes opções coexistem havendo pouquíssimas ocasiões para um cotejo no bom sentido do termo. Como o cardápio é hoje vasto, temos incorporado a produção internacional com certa rapidez, dentro da mesma tônica já antiga dos estudos literários, não sendo raro encontrar a ansiedade em demonstrar atualização no plano dos conceitos acoplada a uma falta de consistência na relação com os objetos (filmes, autores, movimentos estéticos), às vezes revelando constrangedor alheamento face à tradição crítica voltada para o cinema brasileiro (ou mesmo da tradição crítica voltada para outras cinematografias quando são essas que estão em pauta). Tal inconsistência se reflete às vezes na escolha do objeto, às vezes no modo de tratá-lo. E, como resultado mais amplo e geral, se reflete na dispersão de esforços. Não digo isto pensando diretamente no fato de que, na pós-graduação, há uma tendência a se "atirar para todos os lados", como se diz, com a maioria dos professores funcionando como receptores de projetos definidos pelos alunos ingressantes, coisa que tem o seu lado ruim, mas também tem o seu lado bom (a maior liberdade, a rentabilização de paixões pessoais por determinado autor ou tema), restando analisar caso a caso. Estou pensando mais na volubilidade que nos é própria, e que leva a mudanças de rumo encorajadas pela moda, sem que se tenha explorado até o fim determinada linha de trabalho e sem dar a chance para que os problemas a serem formulados surjam do próprio percurso da reflexão na sua interação com os objetos. Em verdade, estou repondo a questão colocada pelo Roberto Schwarz no caso das letras, quando vemos a atualização teórica, ao invés de articulada à problemática em pauta numa pesquisa, se reduzir a mero mimetismo face ao contexto de produção teórica tomado como modelo. Os "becos sem saída" estão nos casos extremos desta pulverização de temas e linhas de trabalho, quando a proposta perde o senso de proporção e relevância. Os caminhos, ao contrário, se abrem quando não voltamos as costas para o solo histórico e para o lugar de onde estamos falando, e mantemos o sentido da intervenção que encontra seus interlocutores e responde a questões postas pela experiência do cinema e da cultura em nosso contexto, o que se dá não apenas a partir da eleição de objetos locais (isto não garante nada), mas fundamentalmente a partir da formação de um ponto de vista local sobre qualquer tema (por exemplo, globalização e novas tecnologias são fenômenos universais, mas vividos em cada canto do mundo de uma maneira específica). O que interessa, portanto, é a formulação de uma problemática que responde a inquietações e impasses que estão à nossa volta e que nos atingem, qualquer que seja o assunto da pesquisa.
7. Foucault, Benjamin, lingüística: aproximações e distanciamentos
Como você vê a aproximação da história do cinema com os métodos do "historiador" francês Michel Foucault? De forma direta: qual é a atualidade dos estudos de Walter Benjamin para o campo cinematográfico? Quais as implicações, nos estudos do cinema, da lingüística e da teoria da literatura (e mais recentemente, da chamada "análise do discurso"), oriundas das formulações de Mikhail Bakhtin, Austin, Oswald Ducrot, Gerard Genette, Christian Metz, Jacques Derrida?
RESPOSTA:
O que melhor resultou da influência de Foucault foram os estudos do século XIX sobre fotografia e pintura, sobre os aparelhos óticos, sobre os hábitos da sociedade e medidas disciplinares ou de controle (incluídas aí práticas policiais), trabalhos que tiveram a sua incidência na reflexão sobre cinema. Claro que penso em Jonathan Crary e sua investigação sobre o sentido da visão e as concepções do olhar, e também em John Tagg [The burden of Representation: Essays on Photographies and Histories. University of Minnesota Press, 1988], e no próprio Tom Gunning e outros teóricos e historiadores que compõem a antologia traduzida na coleção da Cosac & Naify. Antes disto, houve a presença tênue de Foucault em livros sobre os gêneros da indústria, e livros sobre a inscrição do corpo na cultura, onde se destaca alguém como Richard Dyer (que já tinha pensado bem a questão dos gêneros da indústria numa perspectiva de estudo institucional, de "formações discursivas", sem obrigatoriamente usar o vocabulário foucaultiano). Esta questão do corpo e as formas de representá-lo e inscrevê-lo em redes discursivas tem tido ressonância no Brasil, como em um número significativo de trabalhos apresentados na Socine, inclusive o que se fez em função do contato do João Luiz Vieira com Richard Dyer. A incidência maior de Foucault tem sido nas reflexões sobre a questão dos códigos e dos controles que, em geral, envolvem a esfera da mídia e as teorias de subculturas de classe, de etnia, de gênero (masculino/feminino/plural) ou de tribos urbanas, quando muitas vezes os trabalhos se afastam da dimensão estética dos problemas (não por acaso, Foucault hoje tem substituído Gramsci como referência na esfera do Cultural Studies). Mas há um outro pólo de sua influência na discussão da crise do sujeito e da noção de Autor (o tema da morte do autor), onde se dá ênfase à primazia dos sistemas, ou das formações discursivas, e à centralidade dos códigos como a língua. Estas linhas de trabalho têm interesse, mas há o risco de se reduzir todos os processos à esfera do discurso enquanto sistema (ordem, regras), dissolvendo-se a questão da passagem de uma ordem à outra, e aspectos essenciais da interação entre linguagem e mundo. Nem tudo se reduz a uma poética (ou uma retórica), ou à atenção concentrada na elucidação das regras intrínsecas dos gêneros de discurso (ou da codificação do olhar). É preciso conectar a questão das regras e dos discursos com a análise das forças que direcionam o mundo prático, os interesses de classe ou de grupos de outra ordem; enfim, a lógica da vida material e as transformações que o mundo da produção engendra. Porque articulou Foucault a outras indagações sobre o solo social e histórico, Jonathan Crary foi mais fundo nas questões e obteve a ressonância que conhecemos. De minha parte, aprendi mais com o Foucault de As palavras e as coisas, pois meu estudo da alegoria muito se valeu de suas formulações no plano das diferenças entre o mundo renascentista das semelhanças e a noção clássica de representação. Mas meu horizonte foi o de articular o que encontrei em seu livro com o quadro teórico de Walter Benjamin, no qual a questão da alegoria e suas tensões insolúveis - sua dialética de fragmentação e totalização - estão pensadas a partir de uma outra visada da história em que cada momento é pensado como drama, imperativo de violência e contradição viva, insolúvel, entre construção e destruição, civilização e barbárie, melhoria e catástrofe, desde que tudo permaneça como está no terreno da divisão social e do confronto dos interesses nacionais (centro e periferia). É esta crítica à noção de progresso e de continuidade histórica que acredito ser mais produtiva como moldura geral de um trabalho no campo das relações entre cinema e história. Muitos trabalhos incorporam mais a forma como Benjamin historiciza a percepção, a sensibilidade e as categorias estéticas, ou se concentram na sua teoria da modernidade feita a partir do estudo de Baudelaire, como acontece com os autores presentes no livro O cinema e a invenção da modernidade. No entanto, Miriam Hansen, dentro deste mesmo livro, nos lembra que é necessário cautela em tal transplante de configurações do capitalismo do século XIX para a sociedade de massas do século XX, onde enfim estamos. Há uma exploração interessante a fazer inspirada em Miriam Hansen, para além da repetição e extrapolação mecânica do que Benjamin disse sobre a urbanidade, a aura, a arte na era da reprodução. Enfim, historicizar de novo.
Acho que não precisamos voltar aqui à avaliação do legado da linguística (e da semiologia de Metz) em nosso terreno, com seu viés narratológico e mais competente na análise do cinema clássico. A crítica de seus modelos veio por vários lados: os cognitivistas (que também têm dificuldade de falar sobre algo que escapa ao narrativo e seu sistema de inferências) e deleuzianos detonaram a "enunciação", por motivos diferentes. Mas Deleuze conservou alguma coisa deste legado, notadamente quando incorpora a noção de estilo indireto livre, com toda a transformação que faz desta noção a partir das formulações de Bakhtin e Pasolini. Tal noção supõe a confluência de "vozes" e operadores textuais como o narrador, mesmo quando se descarta a psicologia e a tendência à subjetivação que a noção revela em sua tradição vinda da teoria literária. Enfim, já entrando na pergunta sobre Deleuze, a caracterização do cinema moderno teve aí um ponto forte que persiste e não pode prescindir desta tradição da teoria da narrativa para um entendimento do problema quando pensamos os últimos 40 anos de cinema.
8. Deleuze, o cinema e o olhar contemporâneo
É indiscutível a influência e a presença da obra do filósofo francês Gilles Deleuze nos estudos cinematográficos brasileiros contemporâneos. Ausente, por exemplo, da antologia A EXPERIÊNCIA, hoje os estudos cinematográficos de inspiração deleuziana adquiriram uma expressão que poderíamos dizer tão grande quanto aqueles de inspiração freudiana e lacaniana (com naturais intersecções entre ambas). Como você avalia o impacto dos textos deleuzianos especificamente cinematográficas IMAGEM-TEMPO e IMAGEM-MOVIMENTO - nos estudos cinematográficos e, por ampliação, dos conceitos mais "filosóficos" de Deleuze e como vê a sua aplicabilidade na análise fílmica, por exemplo?
RESPOSTA:
Ele ficou fora da antologia porque esta saiu no mesmo ano de A Imagem-movimento, que é de 1983, não sendo ainda referência naquele momento. Seria um item imperativo em novas antologias. O impacto realmente é enorme. Deleuze recolocou o tempo na pauta da teoria do cinema, e inseriu o cinema no campo onde se produz o pensamento do século, construindo uma teoria abrangente em seu escopo - trata-se, quando menos se esperava, de uma nova ontologia do cinema - e bem calibrada em sua estratégia de defesa do cinema moderno como o ponto decisivo onde pensamento, imagem e tempo encontram sua substância (desculpem o termo) comum. Recolocar o tempo significa descartar a base linguística, a álgebra do estruturalismo, e voltar à dinâmica, à intensidade, ao acontecimento. Avaliar tudo isto? Não é propriamente o que posso fazer, se o que se quer é uma reflexão sobre a sua filosofia e os conceitos que inventa. Mas é possível comentar algumas das implicações deste pensamento no plano da crítica, e também algumas formas deste pensamento se apropriar da crítica, notadamente aquela que, em conexão com a Nouvelle Vague, construiu o referencial dominante na concepção que temos do cinema moderno. Sim, porque se, de um lado, Deleuze re-trabalha, da forma que lhe é peculiar, os conceitos de Bergson, faz o mesmo com um enorme corpo de textos escritos sobre cinema, principalmente na França, de modo que o leitor vai reconhecendo aqui e ali os pontos de origem, nem sempre nomeados, e também as diferenças que se introduzem quando o filósofo inscreve idéias e noções em seu estilo de pensar. O essencial é que seu pensamento legitima o moderno, chega a compor um movimento da história do cinema em que os avanços da prática se conectam a uma definição dos conceitos chave: imagem-movimento, imagem-tempo, imagem-cristal. Com isto, o leitor vê confirmada uma forma particular, europeizante e tipicamente "pós-guerra", de entender a história do cinema. Cabe então perguntar: noções como imagem-movimento e imagem-tempo não estariam limitadas por recortes cronológicos à revelia do que o próprio Deleuze pensa sobre a história? Por que é necessário fazer uma leitura do cinema mudo, inclusive das experiências de vanguarda, no interior do que é subsumido à imagem-movimento, como se fosse necessária sua precedência na história do cinema, face à imagem-tempo, que viria depois? O que significa este resíduo cronológico na exposição dos conceitos do filósofo? Não seria redutor este diagnóstico da "liquidez" do impressionismo francês, e não seria limitada sua análise das figurações do cinema de Eisenstein inscritas no campo da imagem-movimento? O que significa este jogo de inversões especulares que faz com que um filósofo, cujas afinidades eletivas conduzem a Nietzsche, privilegie uma galeria de autores muito similar à galeria celebrada pela crítica francesa cristã do pós-guerra e seus derivados?
Algumas destas questões já foram postas por quem se debruçou mais decisivamente sobre os textos de Deleuze, como é o caso de André Parente que, em Narrativa e modernidade [Papirus, 2000] questiona a forma como o filósofo francês (assim como outros autores) concebe a oposição entre o narrativo e não-narrativo no âmbito da imagem. Se a questão é Deleuze, outro percurso de análise do moderno e do pós-moderno que o toma como interlocução central está no livro de Peter Pál Pelbart, A vertigem por um fio: políticas da subjetividade contemporânea [Iluminuras, 2000]. Cito os casos em que há densidade. Na discussão de teoria, em particular quando a pergunta é pela repercussão de um pensamento consagrado, é preciso distinguir quem se insere na problemática deleuziana por opção, ou seja, quem conhece a história e a teoria do cinema, e faz sua escolha a partir de um repertório amplo, daqueles que simplesmente aderem ao que lhes parece "distintivo", no sentido de Pierre Bourdieu. Num período recente, o que me parece pouco produtivo são os lances de filosofia kitsch, a roupagem chique do pensamento trivial, muito próprios a quem escreve como se a reflexão sobre o cinema tivesse começado ontem. Não é raro ver pessoal desavisado cogitar, no que pensam ser exploratório e "de ponta", em supostos caminhos da crítica que, em verdade, já foram percorridos em análises concretas, seja do cinema moderno brasileiro, seja das formas de distinção entre o cinema clássico e o moderno, seja de um autor já arquiinterpretado. Do ponto de vista da crítica, há que se ter um senso de proporção, que muito depende de uma formação do gosto que se articula a conhecimentos históricos, para evitar a aplicação de um repertório conceitual que está em descompasso com a problemática presente no filme que se escolhe examinar. Lembro a piada do pessoal de Letras ao citar a irrelevância de teses do tipo: "A instância da letra no inconsciente, Lacan e as rimas no discurso poético de J.G. de Araújo Jorge". Às vezes, o filme é de pouca envergadura e não adianta forçar o debate estético com a aplicação mecânica de conceitos inventados para pensar questões muito mais complexas do que o objeto diante dos olhos. Isto se torna mais caricato quando o vôo filosofante é forma de elidir o solo sócio-histórico da obra (porque este nem sempre se conhece) e agir como se fossem menores as perguntas sobre a articulação de uma forma estética com o contexto sócio-político de onde emerge.
Indo em direção contrária, e para falar de um caso em que a envergadura das obras se ajusta à complexidade da discussão conceitual, vale a pena examinar a excelente tese de Francisco (Kaq) Saraiva, defendida na UNB, cuja análise de Limite, de Mário Peixoto, demonstra a erudição necessária para um comentário que retoma o problema da distinção, no concreto, entre imagem-movimento e imagem-tempo, analisando a temporalidade inscrita nas imagens do filme, questionando, assim, a suposta ausência da imagem-tempo na primeira vanguarda e seus interlocutores. E também o livro de Cláudio da Costa, Cinema Brasileiro (anos 60-70): dissimetria, oscilação e simulacro (Rio de Janeiro, & Letras, 2000), quando a mobilização dos conceitos é pertinente ao universo do cinema moderno que está em pauta, trazendo nova perspectiva de análise sem descuidar do diálogo com a fortuna crítica já construída em torno de Glauber e Bressane, por exemplo.
9. A Teoria Cognitivista do Cinema
Contando com os seus reparos devidos, poderíamos dizer que a década de 1990 (ou talvez a periodização devesse recuar a partir da segunda metade da década de 1980), vê aflorar uma geração de teóricos, historiadores, críticos e analistas que de certa forma deslocaram o foco central dos estudos cinematográficos da França dos estruturalistas lingüísticos para os Estados Unidos e a Inglaterra dos chamados cognitivistas (David Bordwell, Janet Staiger, Noel Carroll, Richard Arlen, Carl Plantinga etc.). Em que pese algumas obras que manifestam um certo contato com estes textos (praticamente inéditos em português), como você avalia a assimilação deste paradigma teórico e analítico em nosso meio? Nós faríamos a provocação de propor a existência de uma certa resistência a este corpo teórico pelos pesquisadores e teóricos locais, sem avançarmos em suas possíveis causas.
RESPOSTA
O cognitivismo na teoria do cinema surge no bojo de uma deliberada campanha contra a psicanálise e o que estava implicado na teoria do "dispositivo" de Baudry: passividade do espectador, regressão narcisista, vulnerabilidade à manipulação e associações "irracionais". Enfim, tudo o que desestabiliza o Sujeito soberano e as operações autônomas da Razão.
Foi violenta a polêmica, em torno de 1986, na revista October, entre Noel Carroll e Stephen Heath, a partir de um ataque de Noel ao esquema teórico da revista Screen, de tipo lacaniano. Em sua introdução ao Narration in the Fiction Film, Bordwell faz o balanço crítico dessas questões e propõe uma teoria da narrativa menos apoiada em modelos linguísticos e, em especial, na idéia de enunciação, chegando a seu modelo interativo entre filme e espectador, este último dispensando as hipóteses lacanianas sobre o sujeito e atuando na linha da racionalidade do senso comum da espécie: recolhe dados pelo equipamento sensível, formula hipóteses, as verifica e opera segundo um jogo de inferências de tipo binário, como um computador ao processar os dados. Claro que Bordwell não usa assim tal associação, sou eu (e Bill Nichols que, numa crítica à teoria da narrativa de Bordwell, conclui com esta ironia de que tudo funciona às mil maravilhas, desde que a luz saída da tela encontre um computador na platéia). Há um quê de caricatura nisto, mas foi o próprio Noel Carroll quem fez a associação numa conversa comigo lá pelos idos de 1977, quando me explicava a sua teoria da montagem (eu tenho um xerox do texto). Explicou, descreveu como o espectador receberia cada novo plano e formularia as hipóteses, verificaria, alteraria o pressuposto e voltaria ao mesmo procedimento até chegar à resposta satisfatória. Depois de certo tempo, se deu conta e me perguntou: isto soa como um computador? Eu disse sim. Ele sorriu.
Aceitando a provocação de vocês, posso dizer que sou um dos que resistem a este corpo teórico quando assumido em seu lado "contra a interpretação", e estou convencido de que o ensaio sobre cinema no Brasil tem, em curto prazo, caminhos mais interessantes a seguir, fora desta assepsia acadêmica à Bordwell. Mas partilho com eles o zelo pela descrição. E há jovens seguindo esta trilha e fazendo a crítica da tradição francesa de teoria do cinema, coisa que se vê na SOCINE que sempre nos traz uma amostra das preocupações dos vários grupos. Em verdade, sem perder de todo esta associação feita acima com o computador, a coisa é, sem dúvida, mais complicada e tem seu terreno de validade, desde que não radicalizemos esta eliminação da esfera do desejo, do inconsciente, da operação de esquemas ideológicos, enfim de tudo o que sabemos sobre a prática de leitura das imagens que não se reduz a estes algoritmos em estado puro, pois há o "ser em situação" e suas linhas privilegiadas de associações significantes que acredito pouco tem a ver com o que eles chamam de "inferências". Isto fica nítido no livro Blurred Boundaries: Questions of Meaning in Contemporary Culture, onde Bill Nichols tem um artigo extraordinário sobre o caso das imagens em vídeo do espancamento de Rodney King e sobre as leituras feitas por defesa e acusação no julgamento dos policiais envolvidos.
Em defesa dos cognitivistas, temos um bom exemplo do próprio Noel Carroll - um intelectual nitidamente de esquerda no período novayorquino (como Arthur Danto, seu maior inspirador e Annette Michelson, sua maior amiga e ex-orientadora) - que nos oferece um movimento interessante nesta interação entre imagens e cadeias de pensamento lógico em sua análise da `seqüência dos deuses' do filme Outubro, do Eisenstein (ver revista Artforum nº 11, 1973). Sua forma de evidenciar a possibilidade de ver na sequência uma demonstração de tipo matemático (a dita demonstração por absurdo) deixa claro o quanto aí não há preocupação em postular uma operação mental passível de ocorrer num espectador qualquer (como forma de universalizar uma teoria da narrativa pautada pelo dinamismo da percepção e das inferências próprias à espécie). O que há é o trabalho de análise do crítico e sua particular capacidade de interpretação da seqüência. O problema mais geral é que Bordwell, por exemplo, é muito preciso na descrição (o que é ótimo), mas sua assepsia no plano hermenêutico o impede de mobilizar contextos moduladores de interpretações que confiram rentabilidade crítica a suas descrições. Vejam o livro sobre Dreyer, ou o capítulo sobre Godard no Narration. Diz muito, num plano, e diz muito pouco em outro. Sim, sabemos que ele é mestre na crítica das formas do "making meaning" presentes na crítica (especialmente a francesa), o que ele faz de uma "posição transcendental", aquém ou além da problemática em que se empenham os críticos comentados (a alusão a Kant não é casual, mas é preciso não confundir a crítica da razão com o zelo de um inspetor geral muitas vezes amesquinhado). Não surpreende que seu papel maior seja o desse constante mapeamento de questões, com tendência a tais operações de esvaziamento, e este excelente trabalho de elaboração de "introduções", mapeamentos de obras, autores, estilos, tudo o que recomendo a meus alunos que leiam sem esquecer o lado redutor de suas análises e a estreiteza de horizontes de sua critica, porque sua concepção do processo cultural é esquemática, classificatória, excessivamente voltada para questões vocabulares que muitas vezes formatam um falso problema.
10. Cinema e Psicanálise, hoje.
Quais são as implicações para a teoria cinematográfica da psicanálise contemporânea (digamos que "pós-lacaniana")? Em que medida o "retorno a Lacan" promovido por Slavoj Zizek atualiza a psicanálise no exame da produção de sentido na experiência do cinema? Até que ponto é correto recolocar a questão do olhar (nostalgia, pornografia e montagem) para tentar explicar os "impasses da dessublimação repressiva" (A EXPERIÊNCIA DO CINEMA) e o contínuo interesse pelo cinema clássico narrativo?
RESPOSTA:
Há pouco de novo sob o sol da psicanálise do cinema. Mas a área continua sempre presente, principalmente nos seus aspectos que já viraram senso comum da crítica. O impacto de Deleuze eclipsou a teoria do "dispositivo" no seu próprio foco irradiador. As revistas francesas continuam, no entanto, a mobilizar Lacan, notadamente Vertigo com seus números temáticos que quase sempre envolvem assuntos afinados ao quadro conceitual da psicanálise. E, na Universidade de Paris III, Muriel Gagnebin, ligada a Jean-Louis Leutrat, lidera um grupo voltado para a análise psicanalítica da imagem que faz uma ponte interessante com estudos literários. Para nós, no Brasil, a história é diferente pois não tivemos a presença forte da teoria do cinema no eixo Lacan-Althusser; ela foi comentada, explicada, mas pouco assumida, ressalvada a premissa do "dispositivo" na crítica ao cinema clássico (vide meu próprio livro). Há uma nova antologia, onde há psicanálise sem necessariamente haver lacanismo, que merece atenção: Psicanálise, cinema e estéticas da subjetivação, organizado por Giovanna Bartucci (Imago, 2000). Voltando à Europa, vocês citaram o melhor exemplo, pois Slavoj Zizek é muito inteligente e faz exatamente uma psicanálise que se articula com uma indagação sócio-política, trabalhando muito bem as implicações do que tensiona a contradição entre a noção do cidadão (indivíduo abstrato, genérico), sujeito de direitos, e os sujeitos concretos de desejos, em conflito com os imperativos da cidadania. Ver seu Looking Awry: an Introduction to Popular Culture through Jacques Lacan (MIT Press, 1991). Ele tem muita ironia e pratica um ensaísmo brilhante que tem como premissa uma psicologia social complicada, sempre centrada na política, como Marcuse a quem vocês aludem no final da pergunta. Não entendi bem o sentido específico desta tríade "nostalgia, pornografia, montagem", mas o horizonte da pergunta é a questão da potência explicativa das categorias psicanalíticas no plano da cultura. Sem me atribuir competência específica para entrar fundo na questão, acho que continua sendo uma boa aposta esta mobilização das matrizes da formação do sujeito na infância para equacionar determinadas demandas coletivas como esta pela narrativa nos termos clássicos. E lembremos que fetiche é também uma noção chave dentro deste terreno (aqui Laura Mulvey, Fetiche and Curiosity, tem muito a dizer).
11. Dogmas, dissidências, experimental, vanguarda
Conhecemos bem (desde a apresentação a A EXPERIÊNCIA DO CINEMA) do seu vivo interesse pelos "outros" cinemas, pela experiência do filme de vanguarda, do underground americano, do cinema de contestação ao modelo dominante norte-americano. Queríamos que você avaliasse a situação teórica da defesa crítica e política em prol de um "cinema de invenção" (Jairo Ferreira), incluindo na resposta uma visão da reemergência do "cinema-manifesto" (Dogma 95), fenômeno que nos remonta às décadas de 1920 e 1960.
RESPOSTA:
A defesa do cinema de invenção perdeu uma dimensão decisiva de seu empenho: a da utopia. No momento do alto modernismo cinematográfico, digamos nos anos 60-70, qualquer proposta de um cinema alternativo trazia um horizonte de mudanças que eram, ao mesmo tempo, do cinema e da sociedade (e não era preciso vincular experimentos ou vanguardas ao socialismo), pois fazer oposição e buscar o diferente era criar um novo espaço institucional de discussão do cinema (como o fez o underground, longe do mercado e da indústria cultural). Ou era fazer a crítica política apoiada num senso de que a própria lógica engendrada na fatura (modo de produção e linguagem) dos filmes era já uma metáfora de uma outra forma de viver e trabalhar, ou seja, a idéia do alternativo trazia um quê de antecipatório, próprio a quem sente o tempo a favor, apesar dos entraves. Agora, o senso maior é de resistência, de quem sente o tempo contra, e leva o barco como uma assembléia dos sobreviventes, dos que ainda não aderiram ao consenso e à festa da indústria cultural. O próprio Dogma, notadamente para nós, brasileiros, que vivemos já a experiência da estética inventada na escassez, tem esta conotação, mesmo que sejamos simpáticos ao grupo e gostemos do que faz Lars Von Trier, por exemplo. O processo de domesticação da transgressão se acelerou, trazendo a cada exemplo de cinema de invenção um destino de rápida classicização: ganha-se respeito, entra-se para o cânon, o que nos incomoda quando consideramos a intensidade com que se vivem determinadas descobertas logo reduzidas a mais um item na prateleira. Não há aquela excitação "sustentável" de esforço teórico novo e prática nova, com aquelas "great expectations" juvenis. O que não significa que não tenhamos todos um elenco razoável de boas experiências e ótimos filmes a listar a cada ano. Falta o clima, a configuração histórica mais ampla capaz de catalisar a invenção que ressoa e "faz época", algo que poderia ser afinado aos 1920 ou 1960.
12. Documentário
Na introdução do Discurso Cinematográfico, você recorta o objeto de análise no cinema ficcional. E faz a seguinte ressalva: "Aqui é assumido que o cinema, como discurso composto de imagens e sons é, a rigor, sempre ficcional, em qualquer de suas modalidades; sempre um fato de linguagem, um discurso produzido e controlado, de diferentes formas, por uma fonte produtora." Algumas das recentes teorias sobre o documentário - como a formulada por Bill Nichols, por exemplo - defendem uma certa especificidade para o campo do documentário, baseadas no princípio de que as narrativas audiovisuais são socialmente indexadas como ficção ou documentário, a partir de determinações diversas: narrativas e extranarrativas, o que implica em diferentes condições de espectatorialidade e portanto de diálogo entre público e obra. Qual é sua reflexão nesse sentido? Será realmente necessário pensar uma especificidade para o campo do documentário? E em que bases analíticas tal reflexão deve ser feita?
RESPOSTA:
O Bill Nichols tem razão. Assim como o Roger Odin quando desloca a questão com suas noções de leitura ficcionalizante e leitura documentarizante. O problema da distinção entre documentário e ficção é mais complexo. E eu já havia reconhecido isto na segunda edição do livro, quando citei a Zulmira Ribeiro Tavares que havia me advertido para a simplificação contida nesta frase que vocês citam. Há um jogo de palavras que faz confundir "representação" (ou mesmo "discurso") com "ficção". O que ela argumentava era o seguinte: a ficção é um processo criativo, um inventar, imaginar. Não é apenas um realismo equivocado que não se reconhece como tal, ou mera vontade de enganar, mentira com aparência de verdade. Estamos habituados a desqualificar um discurso que deseja o efeito de verdade dizendo que é "ficção", o que na época levava a esta equação: cinema=linguagem=não real=ficção. Não é absurdo tal nivelamento, mas ele toma "ficção" num sentido bem redutor e puramente negativo. Estão certos os que assumem ficção e documentário como sinalizações de gêneros de discurso (ou de expectância) diferentes. Por mais que seja palpável a zona cinzenta em que estaria a fronteira, vale a pena explorar caminhos teóricos que a supõem e tentam tornar mais nítido o espaço em que ela se encontra. As bases analíticas para tanto não poderão vir de uma postura estritamente "estrutural", ou seja, supondo que pela exclusiva observação da imagem, em radical imanência, podemos resolver o problema. É preciso retirar o mundo do parêntese que a fenomenologia (solo da postura estrutural moderna) o colocou e voltar a assumir com maior ênfase a conexão entre produto (imagem e som na tela) e processo. E processo, aqui, entendido em duas pontas: na gênese (a produção, os métodos de trabalho) e na função social (enfim, a recepção, as atitudes de recepção que dependem do contexto e da moldura, e não apenas das qualidades intrínsecas à obra). Enfim, é isto que os teóricos estão fazendo. Para resumir, a categoria que deve ser questionada, neste caso, é a da representação, pelo menos em seu sentido clássico. O que um documentário engendra é uma relação entre câmera e sujeitos (as "personagens" do Coutinho) capaz de produzir um acontecimento singular (que tem algo de teatro como toda ação feita para o olhar, mas não o é em sentido estrito); há algo difícil de nomear, que o filme dá a ver e que exige de nós a construção das noções capazes de dar conta do ocorrido. Certamente ficção não é o termo apropriado.
Toda imagem tem o seu sentido alterado pela moldura, pelo contexto, pela legenda, formas variadas de montagem, mas é preciso reconhecer que há algo mais na franja entre a força intrínseca do registro e o poder da montagem. Algo que tem a ver com o que Balázs denominou a fisionomia das coisas, a face do homem, noções que Eisenstein retomou lembrando que, embora a noção de fisionomia tenha perdido a dimensão científica que tinha no século XVIII, algo nomeado por ela, que se liga ao senso de pregnância e expressividade da forma, age decisivamente sobre nós pela imagem de um rosto, pelo grão de uma voz, pelo pitoresco da paisagem, pela contundência de um fato. Há algo mais do que montagem e desconstrução em Vertov, e tem razão Kracauer quando se contorce para explicar a questão da empatia (no sentido de relação intersubjetiva) diante da imagem, e se esforça em elogiar um certo realismo (estranho realismo, como diria Adorno) como vocação do cinema, em total paralelo e como uma espécie de versão laica do evangelho de Bazin. Pensar o documentário, para além das tipologias, é repor estas questões que passam pelo encontro entre olhar e objeto; pelo que há de drama, hesitação, contenção e exibicionismo, pelo peculiar teatro, enfim, que ocorre no aqui-agora da filmagem.
13. O Cinema Brasileiro Moderno
Publicado originalmente em 1995, a nova versão de "O Cinema Brasileiro Moderno" nos dá um quadro sintético e nem por isto menos rigoroso da trajetória do cinema brasileiro desde os anos 1960. Ao abordar a década de 1990, você se empenha em atualizar algumas premissas do diagnóstico sessentista de Paulo Emílio, sobretudo a do "cinema subdesenvolvido", hipótese que, segundo você escreve textualmente "não se pode vislumbrar o momento em que podemos descartá-la". Como você avalia, no bojo destas formulações, o notável e inegável avanço tecnológico do cinema brasileiro, que está sofrendo presentemente uma "pequena" revolução que é a adoção da tecnologia digital que agiliza e barateia o antes insuportavelmente caro processo de produção cinematográfica? Este acesso às tecnologias de ponta não significará, em primeiro lugar, um aumento significativo na produção brasileira (ainda que o problema do mercado pareça insolúvel), gerando uma situação peculiar, em que, sem mercado e com público limitado (baixa demanda) a produção brasileira (de ficção, documentária, experimental) tende a crescer veriginosamente, pela simplificação e desinflação da produção cinematográfica?
RESPOSTA:
É, sem dúvida, inegável a facilitação que as tecnologias digitais produz, permitindo viabilizar filmes localizados numa gama variada de opções estéticas. Enfim, há aí a combinação de potencial criador, liberdade de linguagem e baixo custo. Algo como a tecnologia atual oferecendo uma experiência que tem o efeito viabilizador da estética da fome, mas dentro de outro protocolo estético que teria a vantagem de ser mais elástico no ajuste a diferentes linguagens e estilos de autor. OK. Há aí uma revolução na produção e um salto quantitativo decisivo, no entanto travado em seu alcance pelo que sabemos: o poder na mídia hoje está concentrado nos canais de distribuição e circulação dos produtos, não tanto no fazer. Para completar seria necessário fazer a revolução na distribuição, o que exige mais do que Leis de Incentivo e muito cacife político, lances que, na ordem de coisas atual, são verdadeira miragem. Se vocês têm razão quanto à promessa de crescimento da produção, resta o fantasma que assombra o cinema brasileiro: a questão da "legitimidade" perante a "opinião pública" (por mais vago e clichê que isto pareça). Com baixo ou alto orçamento, com imagem digital ou não, a produção se apóia na Lei, e o mercado não devolve o capital, mesmo que modesto. É o plano da política do Estado, onde entram ainda questões nacionais como identidade, importância estratégica do nível simbólico, e o plano dos interesses da corporação que sustentam ideologicamente tal aparato legislativo indispensável, o que pressiona fortemente os cineastas a buscar os milhões de espectadores. Como justificar a renúncia fiscal e dizer que o cinema brasileiro interessa a todos se não há público, mesmo que expliquemos as razões históricas disto? A estética, os festivais, a crítica, os cinéfilos, tudo isto ajuda, e bastante, porque, não fora a adesão destes setores a um senso de que é imperativa a existência do cinema brasileiro, talvez o modesto aparato legal não estaria aí. Mas a crítica, por si, não leva o grande público ao cinema. E o processo de afirmação do cinema como instituição forte na esfera pública da mídia fica travado, levando a esta idéia de que não dá para descartar o diagnóstico do subdesenvolvimento econômico, ou seja, um cinema cuja infraestrutura e presença na sociedade estão aquém do que deveria.
Na dinâmica que envolve autores, obras e público, este último é o pólo frágil, esgarçado, que impede a consolidação do sistema do cinema brasileiro na acepção de Antonio Candido (formação da literatura) que Paulo Emílio assume como horizonte não nomeado e que meu texto comenta explicitamente. Claro que há aí possíveis mudanças de escala que permitiriam propor a idéia de um cinema "formado" no plano de sua trajetória estética, cinema que encontraria seu momento decisivo no cinema moderno (a produção da retomada recente confirmaria tal idéia de que o cinema brasileiro "faz sistema", neste sentido mais restrito de autores, obras e críticos). Neste caso, estaríamos descartando a pedra de toque trazida pelo que chamei de esfera pública da mídia, e estaríamos dizendo que, na era da televisão, o cinema virou coisa para poucos. Mas temos de reconhecer que, de fato, não é isto o que ocorre em outros países como Estados Unidos e França, ou Índia e os asiáticos emergentes. Ou seja, o cinema tem um potencial de disseminação social (fundamental para sua relevância na formação do imaginário hegemônico) que aqui não chegou a termo, embora acumulemos conquistas estéticas e uma diversidade de experiências que compreende o curta-metragem, o longa narrativo-dramático, o documentário, o filme experimental. Tomando as idéias de José Paulo Paes para a literatura, o que nos falta é a produção média, o cinema de entretenimento forte. Será que a tecnologia digital vai permitir criar tal segmento e dar-lhe força para furar os bloqueios?
A questão aqui é que pensar numa cinematografia nacional não permite que você se restrinja a uma reflexão e aos problemas do "cinema de arte" que a mim, por exemplo, satisfaz e "faz sistema" em diálogo com a cultura dos festivais e das mostras, das universidades e das cinematecas. Neste sentido, contribuir para uma resposta positiva à pergunta feita acima, é retomar a postura de Glauber Rocha em sua aparição no filme Vento do Leste (1969), de Godard, quando polemizou com o diretor francês e afirmou que o caminho do cinema do terceiro mundo não era propriamente a desconstrução como palavra de ordem geral, mas a construção de cinematografias nacionais que exigiriam outras opções de linguagem, por mais dolorido que isto fosse. Ele foi aí pragmático e verbalizou o que seus filmes nunca seguiram, pois sempre reafirmaram o experimental, com leves acenos de comunicação de massa em O dragão da maldade. Foi com este dilema - a distância entre o que a gente pensa, em tese, sobre o que deveria ser feito coletivamente, e o que a gente investe criticamente em debates que, para nós, são indispensáveis na defesa da qualidade - que terminei, lá atrás, o livro com que começamos esta conversa, O discurso cinematográfico. O tempo passou, mas certos impasses se reiteram.
Nota dos entrevistadores
Ismail Xavier se refere ao projeto de indexação da revista CINEARTE, feito por Lécio Augusto Ramos, Hernani Heffner, Lúcia Maria Pereira Bravo e Osmar José Guimarães da Silva para a extinta Embrafilme (1984).
* Alunos do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da UFF.
"não é um dogma" - sobre cinema novo
Quarenta anos depois, o principal montador do Cinema Novo analisa sua herança
Por João Bernardo Caldeira
Arquivo AJB / dezembro de 1979
Era uma tarde de domingo e, enquanto Gustavo Kuerten entrava em quadra para disputar mais uma final - desta vez em Indianápolis - Eduardo Escorel, diretor de "Lição de Amor", "Ato de Violência" e "Cavalinho Azul" e o mais importante montador do Cinema Novo, nos recebia, em sua casa, no Jardim Botânico.
Trabalhou com Joaquim Pedro de Andrade (O Padre e a Moça, Macunaíma, Os Inconfidentes), Cacá Diegues (Joana Francesa, Quando o Carnaval Chegar, Os Herdeiros), Leon Hirszman (São Bernardo) e Gustavo Dahl (O Bravo Guerreiro). "Eu não sabia nada! Só a inconseqüência da juventude é que permitiu me lançar naquilo", diz, lembrando de quando foi chamado, então com 21 anos, por Glauber Rocha, seis anos mais velho, para montar Terra em Transe.
Com Glauber, a colaboração foi intensa: além de Terra em Transe, montou O Dragão da Maldade Contra o Santo Guerreiro, O Leão de Sete Cabeças e Cabeças Cortadas. Do período de intensa movimentação cinematográfica, com ares também de luta política, fica não apenas a saudade, mas uma referência que ainda paira no ar, acredita. "O fato de se fazer cinema no Brasil até hoje se deve a ter havido um movimento chamado Cinema Novo", sentencia.
O que não quer dizer que esse seja o único paradigma de cinema possível. "Não é um dogma", afirma categoricamente."As pessoas confundem um pouco as coisas, citam a estética da fome como se o cinema dele fosse uma ilustração da estética da fome, quando nunca foi", diz, ao ser perguntado sobre a recente discussão no Caderno B, do Jornal do Brasil, entre a produtora Mariza Leão e a pesquisadora Ivana Bentes, sobre a estética da fome no cinema brasileiro atual. "As pessoas citam a Estética da Fome como se fosse um decálogo", critica.
Guga, maior glória nacional dos dia de hoje - com fardo ainda maior enquanto o futebol anda mal das pernas -, acabou abandonando a partida, ainda no primeiro set, saberíamos mais tarde. Já a conversa, durou quase duas horas. "A essa altura ele já dever ser o campeão", comentamos. Foi quando, então, ficou claro que, aquele que um dia fez parte também da glória nacional, dos spots internacionais, do movimento que procurava retratar as massas e mudar o mundo, hoje é fã de Gustavo Kuerten, daqueles que não perdem um jogo.
"Não tenho PSN", lamentou, sobre o único canal que transmitiria a final.
Você tem memória do artigo do Glauber de julho de 61 publicado no Jornal do Brasil ? Como foi aquela época?
Eu não teria sido levado para o cinema ou não teria sido atraído pelo cinema se eu não tivesse lido naquela época os artigos do Glauber especificamente e os artigos em geral publicados no suplemento dominical do JB. Esse artigo, especificamente, e outros desse momento tiveram uma importância tão grande quanto os filmes, senão ainda maior, porque vieram antes. Ou antes muitas vezes da gente poder ver os filmes. A circulação dos filmes era difícil. A gente ouvia falar dos que estavam sendo feitos, de experiências, algumas das quais nem vieram a ser concluídas. Havia um filme que o Cacá (Diegues) começou a fazer com o Davi (Neves) que ele nunca concluiu. O próprio Barravento (primeiro filme longa metragem de Glauber, de 61) eu fui ver em 62, ainda relativamente cedo, mas vi numa sessão especial.
Os artigos do suplemento dominical do Jornal do Brasil e os artigos do suplemento literário do Estado de São Paulo também, artigos do Paulo Emílio (Salles Gomes), eram coisas que a gente esperava como quem espera alguma coisa que vai servir de alimento. Esses artigos sobre cinema tiveram um papel absolutamente crucial pra mim e imagino para muito mais pessoas nessa época. Era interessante o fato de você saber que existiam outras pessoas ligadas àquilo. Em 61 eu não conhecia ninguém em cinema, eu estava no segundo ano científico. Ali começou a se estabelecer uma espécie assim de rede, talvez fosse o correspondente ao que é a Internet hoje em dia. Sem a sofisticação e a velocidade da Internet, mas os artigos do jornal estabeleciam uma rede que não se sabia, mas que era uma rede de comunicação. Você ficava sabendo do filme tal, que passou, que o Arraial do Cabo foi visto na Europa, na existência dessas pessoas.
A idéia de que era possível pessoas jovens fazerem cinema, que dentro do universo cinema é uma novidade muito grande, e que talvez tenha começado um pouco antes com a Nouvelle-Vague, que teve também uma importância fundamental. As grandes influências desse momento, os grandes fatores de mobilização, de estímulo e de formação dessa rede eram a leitura do Cahiers du Cinema (revista francesa), a leitura dos suplementos dominicais do Jornal do Brasil e todo sábado a leitura do suplemento literário no Estado De S. Paulo. Isso aí criou um vínculo, era leitura absolutamente obrigatória, comentada e assunto de conversa.
A história do cinema novo está muito ligada na sua origem ao Jornal do Brasil. E depois, já uma outra geração, muita ligado ao festival de curta-metragens patrocinado pelo Jornal (Festival JB). Aí já uns 4 ou 5 anos depois, toda uma geração... que era o JB Mesbla, e que virou o Festival JB. Até isso num certo sentido é uma coisa muito diferente de hoje em dia talvez pela quantidade de coisas que são publicadas, revistas e coisas na Internet. Naquela época era também um grupo menor de pessoas que rapidamente estabeleceram uma espécie de confraria.
Glauber, bem como o Cinema Novo, eram associados ao improviso no momento da filmagem. Até que ponto esse improviso também acontecia na montagem?
Acho que ele teve pelo menos algumas fases na carreira. A minha experiência pessoal com ele é relativamente curta, montei quatro filmes dele, além de uma pequena experiência em Maranhão 66, no Maranhão, que fui fazer o som direto, não fiz a montagem. O que posso dizer é que num filme como Terra em Transe (terceiro filme do diretor) o Glauber teve a característica de, a cada etapa, inventar um novo filme. Ele fez varias versões do roteiro, cada uma bastante diferente da outra. De certa maneira, filmou um filme diferente do roteiro e de certa maneira montou um filme diferente da filmagem. Isso não e uma coisa muito comum. Eu acho que é bastante diferente de Deus e o Diabo na Terra do Sol (segundo filme de Glauber), onde tinha um roteiro, uma estrutura, que mais ou menos foi seguido.
Não sei se improviso é a melhor palavra. Com certeza havia muita improvisação na filmagem, mas não sei se a melhor maneira de escrever o método dele fosse o método de improvisação. Ele elaborava muito os filmes antes. Realmente na personalidade dele tinha uma coisa do processo de trabalho ser meio ritualístico, a maneira dele se envolver com a equipe, com os atores. Não era uma relação fria, objetiva, profissional, como muitas vezes a relação de um filme pode ser. Tinha um quê de ritual, de criar uma certa atmosfera, uma certa tensão, um certo clima, e aproveitar isso na filmagem.
Os filmes de Gluber são considerados não lineares, de ruptura. Até que ponto essa ruptura era estabelecida também na montagem, ou já estava prevista no roteiro, ou mesmo na filmagem?
Isso variou muito. No caso do Terra em Transe, que basicamente é um grande flashback, a estrutura narrativa do filme pode ser entendida como aquilo que passa na cabeça do personagem do Paulo Martins, entre o instante em que ele leva os tiros da polícia e o momento em que ele morre, segundos depois. Se passa 1h30 de filme nesse intervalo. Isso deu à montagem do filme uma liberdade muito grande.
O Glauber não tinha previamente uma convicção, uma clareza muito grande de como o filme começava, como seria organizado. Aquilo foi sendo feito na medida em que o filme foi sendo montado. E ele filmou muito, muita coisa não foi aproveitada, tem até essas estórias de que apareceu material não aproveitado, na PUC de Minas, estórias meio rocambolescas.
Mas como eu dizia, isso variou muito. Ele retomou - se é que se pode falar em linearidade no caso do Glauber, que é uma coisa altamente duvidosa - no Dragão da Maldade Contra o Santo Guerreiro uma relativa linearidade que existia em Deus e o Diabo e que não existia em Terra em Transe, que era um filme mais livre. Depois, tanto no Leão de 7 Cabeças, quanto no Cabeças Cortadas, eu acho que ele estava bem mais livre.
E como era essa relação na montagem?
A relação na montagem também variou. Eu tenho a convicção de que, no Brasil, a personalidade criativa decisiva de um filme é a personalidade criativa do diretor. E sempre que trabalhei montando filmes de outros diretores, considerei assim. Acho que a montagem é um trabalho de colaboração, que pode ser maior ou menor dependendo de um série de circunstâncias, inclusive da relação que se estabelece entre o montador e o diretor. Da relação de confiança de parte a parte que existe. No final das contas, o decisivo é a visão e a concepção do diretor que, quando o montador recebe o material, já estão claramente impressas nas imagens e sons. A montagem de um filme, de certa forma, não é uma coisa que se inventa, é alguma coisa que você detecta no material que está feito. A maneira como um determinado conjunto de sons e imagens pode ser organizado, já está dentro do próprio material. O trabalho do montador é muito mais de decifrar aquele material que ele recebe do que o de inventar ou de criar uma nova forma para aquilo. Isso, a meu ver, não diminui em nada a importância do trabalho da montagem em qualquer filme. Em qualquer concepção, de qualquer tipo de filme, esse é o momento em que o filme ganha sua forma final. É um momento absolutamente crucial.
Terra em Transe foi o segundo filme que eu montei, tinha acabado de completar 21 anos, depois de O Padre e a Moça (de Joaquim Pedro de Andrade). Eu não sabia nada! Só a inconseqüência da juventude (risos) é que permitiu me lançar naquilo. Ao mesmo tempo, isso é uma demonstração de uma grande generosidade por parte do Glauber, com a pouca experiência que eu tinha. Uma demonstração também do momento, da mocidade das pessoas que estavam fazendo cinema, o Glauber, que é de 1939, era 6 anos mais velho do que eu.
Para mim foi um aprendizado extraordinário, como todo filme é, até hoje. Mas hoje em dia talvez eu possa ter a pretensão de achar que eu sei um pouco mais do que sabia naquele tempo. Realmente aprendi ali, junto com ele, fazendo aquele filme.
Com exceção do Nelson (Pereira do Santos), você trabalhou com os principais diretores do Cinema Novo. Qual era o ponto de interseção entre eles e o que a obra de Glauber trazia de singular em relação ao movimento?
...(longa pausa) Pergunta difícil!(risos).
Havia um elo bastante forte unindo essas pessoas, não deixava de haver tensões, ameaças de ruptura, brigas, mas havia um elo. Embora eu ache que as concepções de cinema, tanto de linguagem cinematográfica, quanto de interesse, fossem bastante distintas. Trabalhar com essas pessoas era questão de fazer parte de um determinado grupo que estava começando a fazer cinema e tinha uma espécie de fé, de crença na sua importância, uma crença quase mística de um poder que o cinema teria.
No plano concreto dos filmes, o fato de eu ter montado Terra em Transe, criou uma certa identidade com essas pessoas. Quero dizer, eu era a pessoa que tinha trabalhado com Glauber em Terra em Transe. Imagino que isso tenha levado essas pessoas a me chamarem para montar seus filmes a partir daí.
Durante 10 anos (65-75) eu trabalhei quase que exclusivamente nisso. Mas ao mesmo tempo havia personalidades muito diferentes, e as relações no trabalho também eram distintas, assim como os filmes.
O Glauber tinha um pouco a vocação de chefe de escola, de ser porta estandarte, de comandar a massa. Um filme que ficava pronto, quando ele via, se ele gostava ou não, como é que ele reagia, isso tudo gerava tensões. Ou, às vezes, isso gerava uma espécie de defesa incondicional do que vinha, independente de uma avaliação objetiva. Era complicado quando uma pessoa de fora, que não era do grupo, não gostava de um filme. Aí o Glauber se levantava como grande defensor.
Talvez uma postura anti-imperialista fosse uma das coisas que os unisse...
Essa coisa do anti-colonialismo cultural, marcou muito essa geração, do final da década de 50 até 64. Um período de participação política, agitação, expectativa de transformações e que todo mundo via em diferentes graus. Isso se refletia, com certeza, no trabalho das pessoas. Essa idéia de um cinema para o Terceiro Mundo, não colonizado, em conflito com o cinema americano, dominava o debate ideológico e o debate cultural. E o Glauber era um dos grandes porta-vozes disso.
Mas diferenças estética existiam...
Pegando o Padre e a Moça, São Bernardo (Leon Hirszman) e Eles Não Usam Black Tie (Leon Hirszman) como exemplo, são filmes que se pode dizer que têm uma empostação, uma estrutura narrativa que poderia se chamar de cinema clássico, um cinema narrativo. São filmes que eu gosto bastante, mas são muito diferentes dos filmes do Glauber, de Terra e Transe principalmente.
Porém, pegando Porto das Caixas (Paulo César Saraceni, 1965) e Cinco Vezes Favela (5 episódios de 5 diretores diferentes) como exemplo, nota-se que são muito diferentes. Porto das Caixas e Deus e o Diabo, são propostas muito distintas.
Nem por isso o Glauber deixou de ser um grande defensor de Porto das Caixas, que foi um filme muito criticado pela esquerda, pelo CPC da UNE, que o via como um filme que não estabelecia um elo de comunicação com o público.
Havia muita discussão entre o cinema comprometido com a busca e transformação de uma linguagem, e o cinema seguindo um padrão narrativo mais consolidado, estabelecendo elos afetivos e emocionais com a platéia. Assalto ao Trem Pagador (Roberto Farias), por exemplo, é um filme que se assiste até hoje em dia, extremamente bem feito, eficaz, muito forte, com seqüências muito bem feitas. E que até eu acho que tem esse fenômeno, que um filme como Assalto ao Trem Pagador envelhece muito melhor do que um filme como Porto das Caixas.
Hoje é perfeitamente possível assistir a Assalto ao Tem Pagador, continua sendo um filme interessante. Eu talvez não dissesse o mesmo de Porto das Caixas. Então, isso pra mim varia muito. Uma coisa é o filme no momento em que ele é feito e tudo o que está em torno daquilo, outra coisa é 20 anos depois, ou 30 anos, ou mais. Já se passaram quase 40 anos. Ano que vem fariam 40 anos que surgem estes filmes: Cinco Vezes favela, Porto das Caixas, Assalto ao Trem Pagador. E num momento em que o Glauber ainda era o diretor de Barravento, que muito pouca gente tinha visto, não tinha sido lançado comercialmente, tinha ganho prêmio na Tchecoslováquia. Mas apesar disso ele já deitava falação, já comandava esse debate. Ele tinha presença e influência muito grandes, mesmo antes de ser um diretor consagrado, que passou a ser a partir de Deus e o Diabo e depois com Terra em Transe.
"Muitos dos filmes do Cinema Novo envelheceram mal"
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Por João Bernardo Caldeira
Arquivo AJB / dezembro de 1979
Era uma tarde de domingo e, enquanto Gustavo Kuerten entrava em quadra para disputar mais uma final - desta vez em Indianápolis - Eduardo Escorel, diretor de "Lição de Amor", "Ato de Violência" e "Cavalinho Azul" e o mais importante montador do Cinema Novo, nos recebia, em sua casa, no Jardim Botânico.
Trabalhou com Joaquim Pedro de Andrade (O Padre e a Moça, Macunaíma, Os Inconfidentes), Cacá Diegues (Joana Francesa, Quando o Carnaval Chegar, Os Herdeiros), Leon Hirszman (São Bernardo) e Gustavo Dahl (O Bravo Guerreiro). "Eu não sabia nada! Só a inconseqüência da juventude é que permitiu me lançar naquilo", diz, lembrando de quando foi chamado, então com 21 anos, por Glauber Rocha, seis anos mais velho, para montar Terra em Transe.
Com Glauber, a colaboração foi intensa: além de Terra em Transe, montou O Dragão da Maldade Contra o Santo Guerreiro, O Leão de Sete Cabeças e Cabeças Cortadas. Do período de intensa movimentação cinematográfica, com ares também de luta política, fica não apenas a saudade, mas uma referência que ainda paira no ar, acredita. "O fato de se fazer cinema no Brasil até hoje se deve a ter havido um movimento chamado Cinema Novo", sentencia.
O que não quer dizer que esse seja o único paradigma de cinema possível. "Não é um dogma", afirma categoricamente."As pessoas confundem um pouco as coisas, citam a estética da fome como se o cinema dele fosse uma ilustração da estética da fome, quando nunca foi", diz, ao ser perguntado sobre a recente discussão no Caderno B, do Jornal do Brasil, entre a produtora Mariza Leão e a pesquisadora Ivana Bentes, sobre a estética da fome no cinema brasileiro atual. "As pessoas citam a Estética da Fome como se fosse um decálogo", critica.
Guga, maior glória nacional dos dia de hoje - com fardo ainda maior enquanto o futebol anda mal das pernas -, acabou abandonando a partida, ainda no primeiro set, saberíamos mais tarde. Já a conversa, durou quase duas horas. "A essa altura ele já dever ser o campeão", comentamos. Foi quando, então, ficou claro que, aquele que um dia fez parte também da glória nacional, dos spots internacionais, do movimento que procurava retratar as massas e mudar o mundo, hoje é fã de Gustavo Kuerten, daqueles que não perdem um jogo.
"Não tenho PSN", lamentou, sobre o único canal que transmitiria a final.
Você tem memória do artigo do Glauber de julho de 61 publicado no Jornal do Brasil ? Como foi aquela época?
Eu não teria sido levado para o cinema ou não teria sido atraído pelo cinema se eu não tivesse lido naquela época os artigos do Glauber especificamente e os artigos em geral publicados no suplemento dominical do JB. Esse artigo, especificamente, e outros desse momento tiveram uma importância tão grande quanto os filmes, senão ainda maior, porque vieram antes. Ou antes muitas vezes da gente poder ver os filmes. A circulação dos filmes era difícil. A gente ouvia falar dos que estavam sendo feitos, de experiências, algumas das quais nem vieram a ser concluídas. Havia um filme que o Cacá (Diegues) começou a fazer com o Davi (Neves) que ele nunca concluiu. O próprio Barravento (primeiro filme longa metragem de Glauber, de 61) eu fui ver em 62, ainda relativamente cedo, mas vi numa sessão especial.
Os artigos do suplemento dominical do Jornal do Brasil e os artigos do suplemento literário do Estado de São Paulo também, artigos do Paulo Emílio (Salles Gomes), eram coisas que a gente esperava como quem espera alguma coisa que vai servir de alimento. Esses artigos sobre cinema tiveram um papel absolutamente crucial pra mim e imagino para muito mais pessoas nessa época. Era interessante o fato de você saber que existiam outras pessoas ligadas àquilo. Em 61 eu não conhecia ninguém em cinema, eu estava no segundo ano científico. Ali começou a se estabelecer uma espécie assim de rede, talvez fosse o correspondente ao que é a Internet hoje em dia. Sem a sofisticação e a velocidade da Internet, mas os artigos do jornal estabeleciam uma rede que não se sabia, mas que era uma rede de comunicação. Você ficava sabendo do filme tal, que passou, que o Arraial do Cabo foi visto na Europa, na existência dessas pessoas.
A idéia de que era possível pessoas jovens fazerem cinema, que dentro do universo cinema é uma novidade muito grande, e que talvez tenha começado um pouco antes com a Nouvelle-Vague, que teve também uma importância fundamental. As grandes influências desse momento, os grandes fatores de mobilização, de estímulo e de formação dessa rede eram a leitura do Cahiers du Cinema (revista francesa), a leitura dos suplementos dominicais do Jornal do Brasil e todo sábado a leitura do suplemento literário no Estado De S. Paulo. Isso aí criou um vínculo, era leitura absolutamente obrigatória, comentada e assunto de conversa.
A história do cinema novo está muito ligada na sua origem ao Jornal do Brasil. E depois, já uma outra geração, muita ligado ao festival de curta-metragens patrocinado pelo Jornal (Festival JB). Aí já uns 4 ou 5 anos depois, toda uma geração... que era o JB Mesbla, e que virou o Festival JB. Até isso num certo sentido é uma coisa muito diferente de hoje em dia talvez pela quantidade de coisas que são publicadas, revistas e coisas na Internet. Naquela época era também um grupo menor de pessoas que rapidamente estabeleceram uma espécie de confraria.
Glauber, bem como o Cinema Novo, eram associados ao improviso no momento da filmagem. Até que ponto esse improviso também acontecia na montagem?
Acho que ele teve pelo menos algumas fases na carreira. A minha experiência pessoal com ele é relativamente curta, montei quatro filmes dele, além de uma pequena experiência em Maranhão 66, no Maranhão, que fui fazer o som direto, não fiz a montagem. O que posso dizer é que num filme como Terra em Transe (terceiro filme do diretor) o Glauber teve a característica de, a cada etapa, inventar um novo filme. Ele fez varias versões do roteiro, cada uma bastante diferente da outra. De certa maneira, filmou um filme diferente do roteiro e de certa maneira montou um filme diferente da filmagem. Isso não e uma coisa muito comum. Eu acho que é bastante diferente de Deus e o Diabo na Terra do Sol (segundo filme de Glauber), onde tinha um roteiro, uma estrutura, que mais ou menos foi seguido.
Não sei se improviso é a melhor palavra. Com certeza havia muita improvisação na filmagem, mas não sei se a melhor maneira de escrever o método dele fosse o método de improvisação. Ele elaborava muito os filmes antes. Realmente na personalidade dele tinha uma coisa do processo de trabalho ser meio ritualístico, a maneira dele se envolver com a equipe, com os atores. Não era uma relação fria, objetiva, profissional, como muitas vezes a relação de um filme pode ser. Tinha um quê de ritual, de criar uma certa atmosfera, uma certa tensão, um certo clima, e aproveitar isso na filmagem.
Os filmes de Gluber são considerados não lineares, de ruptura. Até que ponto essa ruptura era estabelecida também na montagem, ou já estava prevista no roteiro, ou mesmo na filmagem?
Isso variou muito. No caso do Terra em Transe, que basicamente é um grande flashback, a estrutura narrativa do filme pode ser entendida como aquilo que passa na cabeça do personagem do Paulo Martins, entre o instante em que ele leva os tiros da polícia e o momento em que ele morre, segundos depois. Se passa 1h30 de filme nesse intervalo. Isso deu à montagem do filme uma liberdade muito grande.
O Glauber não tinha previamente uma convicção, uma clareza muito grande de como o filme começava, como seria organizado. Aquilo foi sendo feito na medida em que o filme foi sendo montado. E ele filmou muito, muita coisa não foi aproveitada, tem até essas estórias de que apareceu material não aproveitado, na PUC de Minas, estórias meio rocambolescas.
Mas como eu dizia, isso variou muito. Ele retomou - se é que se pode falar em linearidade no caso do Glauber, que é uma coisa altamente duvidosa - no Dragão da Maldade Contra o Santo Guerreiro uma relativa linearidade que existia em Deus e o Diabo e que não existia em Terra em Transe, que era um filme mais livre. Depois, tanto no Leão de 7 Cabeças, quanto no Cabeças Cortadas, eu acho que ele estava bem mais livre.
E como era essa relação na montagem?
A relação na montagem também variou. Eu tenho a convicção de que, no Brasil, a personalidade criativa decisiva de um filme é a personalidade criativa do diretor. E sempre que trabalhei montando filmes de outros diretores, considerei assim. Acho que a montagem é um trabalho de colaboração, que pode ser maior ou menor dependendo de um série de circunstâncias, inclusive da relação que se estabelece entre o montador e o diretor. Da relação de confiança de parte a parte que existe. No final das contas, o decisivo é a visão e a concepção do diretor que, quando o montador recebe o material, já estão claramente impressas nas imagens e sons. A montagem de um filme, de certa forma, não é uma coisa que se inventa, é alguma coisa que você detecta no material que está feito. A maneira como um determinado conjunto de sons e imagens pode ser organizado, já está dentro do próprio material. O trabalho do montador é muito mais de decifrar aquele material que ele recebe do que o de inventar ou de criar uma nova forma para aquilo. Isso, a meu ver, não diminui em nada a importância do trabalho da montagem em qualquer filme. Em qualquer concepção, de qualquer tipo de filme, esse é o momento em que o filme ganha sua forma final. É um momento absolutamente crucial.
Terra em Transe foi o segundo filme que eu montei, tinha acabado de completar 21 anos, depois de O Padre e a Moça (de Joaquim Pedro de Andrade). Eu não sabia nada! Só a inconseqüência da juventude (risos) é que permitiu me lançar naquilo. Ao mesmo tempo, isso é uma demonstração de uma grande generosidade por parte do Glauber, com a pouca experiência que eu tinha. Uma demonstração também do momento, da mocidade das pessoas que estavam fazendo cinema, o Glauber, que é de 1939, era 6 anos mais velho do que eu.
Para mim foi um aprendizado extraordinário, como todo filme é, até hoje. Mas hoje em dia talvez eu possa ter a pretensão de achar que eu sei um pouco mais do que sabia naquele tempo. Realmente aprendi ali, junto com ele, fazendo aquele filme.
Com exceção do Nelson (Pereira do Santos), você trabalhou com os principais diretores do Cinema Novo. Qual era o ponto de interseção entre eles e o que a obra de Glauber trazia de singular em relação ao movimento?
...(longa pausa) Pergunta difícil!(risos).
Havia um elo bastante forte unindo essas pessoas, não deixava de haver tensões, ameaças de ruptura, brigas, mas havia um elo. Embora eu ache que as concepções de cinema, tanto de linguagem cinematográfica, quanto de interesse, fossem bastante distintas. Trabalhar com essas pessoas era questão de fazer parte de um determinado grupo que estava começando a fazer cinema e tinha uma espécie de fé, de crença na sua importância, uma crença quase mística de um poder que o cinema teria.
No plano concreto dos filmes, o fato de eu ter montado Terra em Transe, criou uma certa identidade com essas pessoas. Quero dizer, eu era a pessoa que tinha trabalhado com Glauber em Terra em Transe. Imagino que isso tenha levado essas pessoas a me chamarem para montar seus filmes a partir daí.
Durante 10 anos (65-75) eu trabalhei quase que exclusivamente nisso. Mas ao mesmo tempo havia personalidades muito diferentes, e as relações no trabalho também eram distintas, assim como os filmes.
O Glauber tinha um pouco a vocação de chefe de escola, de ser porta estandarte, de comandar a massa. Um filme que ficava pronto, quando ele via, se ele gostava ou não, como é que ele reagia, isso tudo gerava tensões. Ou, às vezes, isso gerava uma espécie de defesa incondicional do que vinha, independente de uma avaliação objetiva. Era complicado quando uma pessoa de fora, que não era do grupo, não gostava de um filme. Aí o Glauber se levantava como grande defensor.
Talvez uma postura anti-imperialista fosse uma das coisas que os unisse...
Essa coisa do anti-colonialismo cultural, marcou muito essa geração, do final da década de 50 até 64. Um período de participação política, agitação, expectativa de transformações e que todo mundo via em diferentes graus. Isso se refletia, com certeza, no trabalho das pessoas. Essa idéia de um cinema para o Terceiro Mundo, não colonizado, em conflito com o cinema americano, dominava o debate ideológico e o debate cultural. E o Glauber era um dos grandes porta-vozes disso.
Mas diferenças estética existiam...
Pegando o Padre e a Moça, São Bernardo (Leon Hirszman) e Eles Não Usam Black Tie (Leon Hirszman) como exemplo, são filmes que se pode dizer que têm uma empostação, uma estrutura narrativa que poderia se chamar de cinema clássico, um cinema narrativo. São filmes que eu gosto bastante, mas são muito diferentes dos filmes do Glauber, de Terra e Transe principalmente.
Porém, pegando Porto das Caixas (Paulo César Saraceni, 1965) e Cinco Vezes Favela (5 episódios de 5 diretores diferentes) como exemplo, nota-se que são muito diferentes. Porto das Caixas e Deus e o Diabo, são propostas muito distintas.
Nem por isso o Glauber deixou de ser um grande defensor de Porto das Caixas, que foi um filme muito criticado pela esquerda, pelo CPC da UNE, que o via como um filme que não estabelecia um elo de comunicação com o público.
Havia muita discussão entre o cinema comprometido com a busca e transformação de uma linguagem, e o cinema seguindo um padrão narrativo mais consolidado, estabelecendo elos afetivos e emocionais com a platéia. Assalto ao Trem Pagador (Roberto Farias), por exemplo, é um filme que se assiste até hoje em dia, extremamente bem feito, eficaz, muito forte, com seqüências muito bem feitas. E que até eu acho que tem esse fenômeno, que um filme como Assalto ao Trem Pagador envelhece muito melhor do que um filme como Porto das Caixas.
Hoje é perfeitamente possível assistir a Assalto ao Tem Pagador, continua sendo um filme interessante. Eu talvez não dissesse o mesmo de Porto das Caixas. Então, isso pra mim varia muito. Uma coisa é o filme no momento em que ele é feito e tudo o que está em torno daquilo, outra coisa é 20 anos depois, ou 30 anos, ou mais. Já se passaram quase 40 anos. Ano que vem fariam 40 anos que surgem estes filmes: Cinco Vezes favela, Porto das Caixas, Assalto ao Trem Pagador. E num momento em que o Glauber ainda era o diretor de Barravento, que muito pouca gente tinha visto, não tinha sido lançado comercialmente, tinha ganho prêmio na Tchecoslováquia. Mas apesar disso ele já deitava falação, já comandava esse debate. Ele tinha presença e influência muito grandes, mesmo antes de ser um diretor consagrado, que passou a ser a partir de Deus e o Diabo e depois com Terra em Transe.
"Muitos dos filmes do Cinema Novo envelheceram mal"
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